Era uma história como as outras. Começava ao início da noite com o primeiro luar a envolver as personagens e o cenário. Podemos talvez supor que se ouvisse um último chilrear de pássaro e que os clarões dos candeeiros de rua se acendessem justamente no momento em que a imagem surge e os nossos olhos começam a procurar o fio à meada...
A figura esguia precipitava-se em grande velocidade e num pranto sonoro pela marginal quase deserta. Os poucos transeuntes olhavam perplexos para aquela agitação súbita e inesperada que lhes perturbava o passeio nocturno de sábado. Pobres e fúteis mentes que julgaram saber o que se passava, que ousaram comentar entre si o quão desnecessária era aquela confusa correria. Na verdade, nem eu sei o motivo das lágrimas ou da pressa. Se é que era pressa. Era talvez uma última tentativa de deixar para trás os eventos tristes, as pessoas incómodas, as recordações latejantes. Talvez tudo isso se libertasse com a velocidade crescente, percorresse os cabelos esvoaçantes e se lançasse das suas pontas para a atmosfera.
Eu, portanto, nada sabia sobre os motivos ou as consequências. Lia apenas a expressão daqueles escassos segundos em que o rosto dela foi visível da minha janela estreita. E tudo ali me dizia que a provação era profunda, sinistra, insuportável. Sonhei, nessa mesma noite, com os olhos negros de carvão, vidrados em qualquer coisa que não devia ser deste mundo. Estava demasiado longe para ver se chorava mas tenho a certeza que sim.
Imaginei que nessa noite se despedira do seu amante/amado/amor (qualquer coisa visceral que valesse aquela expressão de pura mágoa), depois de dias e noites a conjecturar se o faria, depois de horas intermináveis a convencer-se que o amor afinal não bastava. O ruído de fundo era, também ele, ensurdecedor, abafava a voz da consciência sem qualquer piedade. E tudo apontava para aquele triste final, em que ela correria até lhe faltar o fôlego, em direcção ao abismo dos sentimentos. Tentando que a impossibilidade de respirar, as dores profundas nas pernas e o violento impacto do ar no rosto apagassem a memória daquilo que acabara de fazer.
Quando o vulto dela se perdeu no fim do meu campo visual não saí pela porta, não tentei segui-la, não estiquei sequer o pescoço para tentar prolongar mais um pouco aquela cena melodramática. Afastei-me, crente na minha história inventada. Acendi o lume e coloquei a água a ferver. Bebi o chá quente em goladas longas. Tirei a roupa que me pesava nos ombros e tomei um interminável banho morno. Quando voltei à sala o gato miou com lassidão e sentou-se no meu colo. Adormeci com a imagem difusa da sua cauda amarela e laranja a aninhar-se sobre a camisa de dormir semi-transparente. No meu sonho era eu quem corria, quem sofria, quem desejava que a marginal não tivesse fim e que a corrida pudesse perdurar para sempre. Se ela chorou eu também chorei, se os pés lhe doíam a cada passo também eu sentia aquele sofrimento ritmado a cada impacto no solo.
Quando alguém bateu à porta, despertei com um salto. O gato miou e estrebuchou, assustado com a minha brusquidão incomum. Vesti o robe. Durante um milésimo de segundo voltei a convencer-me que de facto alguém batera à porta e que devia dirigir-me ao fundo da divisão para abri-la.
Era ele. Estava na hora.