Resoluções

Diz-se que as grandes resoluções para o futuro se fazem no último dia do ano:
Um punhado de passas e um punhado de desejos, tudo de uma assentada enquanto o fogo de artifício estala e os cristais colidem em felicidade conjunta.

O ano passado o fogo foi colorido e hipnotizante. Dispensei as passas. O champanhe era bom e eu estava de branco, rodeada do mundo inteiro. A meia-noite passou e eu molhei-me na água fria do oceano, o mundo inteiro ainda comigo em sinceras gargalhadas. Não me lembro de pedir absolutamente nada.
Mas devia ter pedido. Devia ter engolido as passas num trago só.
Se o tivesse feito talvez agora não olhasse para trás para ver a triste realidade: o fogo de artifício que eram faíscas tristes, o champanhe que era água da chuva, o banho de mar que era um balde de água gelada, o mundo inteiro que era uma pessoa só.

Este ano já tenho um pedido. Vou repeti-lo doze vezes, de doze formas diferentes, na minha cabeça, com ilustrações de memórias. Vou pedi-lo com fervor, como se não fosse um direito. Vou pedi-lo com humildade, como se não o merecesse. Vou pedi-lo com esperança, embora não tenha a certeza se resta alguma em mim.

Vou pedir a verdade.


My mind holds the key... My mind holds the key...

Postcards from Italy

Os momentos de angústia e contemplação por vezes conduzem-nos a felizes e inesperadas descobertas.
Enjoy! :')



Primeira coisa a fazer depois do vendaval: deixar assentar a poeira.

O Complexo de Cameron

Situação e/ou qualidade daqueles que estabelecem relacionamentos com a motivação genuína e convicta de reabilitar a outra pessoa, nomeadamente se esta mostrar condicionalismos comportamentais gerados por experiências traumatizantes anteriores, independentemente da previsibilidade de uma disfunção subjacente.

Estou a pensar fazer uma entrada na Wikipédia...

Noite cega

A meia-luz, o contorno fluorescente do balcão hipnotiza.
Os vultos adormecidos nas camas altas respiram a um ritmo sincopado, números e linhas a piscarem a seu lado, 
desumanizando o cenário da madrugada.

No silêncio, a mulher cega segura-me as mãos com força, os olhos vazios e a expressão assustada, beija-me os dedos, pede-me que ali fique mais um pouco na minha noite, que é o seu sempre, e eu fico. Há um inigualável conforto no toque humano, ainda mais nos dedos nodosos e deformados de quem não tem mais ninguém. Dois desesperos diferentes encontram-se no momento improvável das seis da manhã e anulam-se durante um minuto.

Quando as luzes se acendem e as mãos se separam devagar eu afasto-me, os meus olhos mais vazios do que os dela.
Imagino-te sentado. As almofadas do sofá amarrotadas, húmidas da transpiração de ali estares há horas, as paredes de tinta roída e desbotada, mais tristes agora que te morreu mais um pedaço de alma.
O cinzeiro cheio em posição precária ameaça espalhar uma nuvem de cinza pela divisão, não bastasse já a nuvem de fumo que sai dos teus lábios secos.
A tua mulher deambula pela casa. Ouves gavetas a fecharem-se, as solas rasas a raspar o soalho, a água da torneira a correr, o interruptor do quarto uma e outra vez. Não sabes se já foi noite a seguir ao dia de ontem porque os estores estão fechados. Engoles a medicação de um trago só, sem relógio, sem calendário. Atiravas-te da ponte se tivesses energia de chegar até lá. Mergulhavas da janela, mas o trinco está estragado e seria uma pena sujar de sangue a calçada lá em baixo.
Já foste arrogante mas agora não és nada. 
Tiveste uma filha mas agora tens apenas uma pessoa que entreabre a porta e te chama pai.
Já tentaste recriminar-te por teres transformado a vida dos outros num inferno mas compreendeste que não vale a pena.
Passaste a vida a decepar os dedos a ti apontados e agora tens uma colecção deles em frascos. De vez em quando livras-te deles num ataque de fúria, vidros partidos por todo o lado, mas umas horas depois eles lá estão todos outra vez, inalterados e meticulosamente dispostos por data e local de origem.
Nada no mundo pode limpar a mancha que tapaste com a almofada amarrotada do sofá.

E tudo o vento levou

Afinal a morte também pode ser assim.

É estar cá e não estar.
Outra vez o maldito espelho, a reflectir a última sombra daquilo que já não volta mais.
E aquela terrível verdade que é ser adulto: às vezes ninguém nos pode ajudar.
E aquela terrível verdade que é ter memória: tudo regressa quando estamos frágeis.
E aquela terrível verdade que vem de confiar em alguém: há pessoas muito más.