O descanso do blog

Informo os leitores resistentes deste blog que ele vai entrar em período indeterminado de hibernação.
Até ao regresso encontram-me aqui, no blog Entrelinhas, onde vos incito a participar activamente.

Policiar o Amor?


Quem já teve o imenso prazer de visitar Paris conhece, certamente, a famosa Pont des Arts. Construída no início do século XIX, durante o domínio de Napoleão I, sobreviveu às duas Grandes Guerras e continua a projectar-se harmoniosamente entre as duas margens do Sena. Nos últimos anos, num acto de romantismo, os casais de namorados colocam cadeados com os seus nomes gravados no corrimão da ponte atirando depois a chave para as águas do rio, em sinal de compromisso.
Em resposta a este fenómeno colectivo, que se tornou um dos símbolos da cidade do amor, a câmara municipal ordenou o policiamento da ponte no sentido de tentar impedir as pessoas de atirarem ao rio as chaves.

A este propósito, ocorre-me analisar a importância dos rituais na vida das pessoas, a forma como se generalizam e perpetuam e como lhes são atribuídos significados incríveis. Desde os rituais de passagem à idade adulta das tribos mais ancestrais do planeta até ao casamento, à nossa volta sempre se cultivaram os eventos simbólicos. Desta forma, toda a comunidade sabe que um determinado indivíduo passou a uma nova fase da sua vida ou tomou uma importante decisão.

Na verdade, nada mudará depois de atirada a chave ao rio. Nenhuma dúvida se dissipará e nenhuma certeza se tornará real. Então, porque é tão importante para tanta gente fazê-lo?


Púrpura

Da minha memória escarlate, em tudo revolvida pelo teu carácter de tornado encantador, escapam-se de quando em vez momentos de um passado recente, escorrendo saudade e êxtase, que se acabam nas minhas unhas de púrpura cintilante, batendo as teclas do computador novo.

Os dias escorrem, agora, com tranquilidade, rumo a um destino indecifrável, que tantas vezes teima em levar-nos juntos no mesmo barco, contra as tremendas vagas. Nestes dias de precário equilíbrio, lábios rasgados de sal e sede, mar inerte, enorme, anil, vou sorvendo ternos goles da minha consciência cristalina e assim resisto. Quando, exausta, me encolho sobre mim e repouso nas tábuas ásperas do fundo do barco, tu afagas-me o cabelo ondulado e lanças um sopro de calma perfumada que me adormece.

O futuro é um caminho traçado em águas que ninguém conhece e termina em solo firme de lugar algum.

O meu rectângulo


É impressão minha ou anda muita gente a tentar boicotar o "nosso rectângulo" ?

Eu gosto deste meu rude quadrilátero, de costa vasta e clima agradável, de gentes mornas e pacíficas que fazem revoluções com cravos e se manifestam calmamente, mesmo quando o chão se vai rachando debaixo dos próprios pés.
O que eu não gosto é que agarrem em todas estas pessoas e lhes atribuam a relevância de fantoches sem nome, sem densidade, sem direitos e sem sonhos. O que não gosto é de pavões em fato e gravata que nada sabem da vida real, que vomitam números em catadupa e que nos puxam o tapete.

Gosto ainda menos desta filosofia do "come e cala", dos fins que justificam os meios, especialmente quando os fins afinal são todos mentira.
Revolta-me ouvir e não conseguir acreditar numa palavra, ver-me impotente, sentir-me cada vez mais a caminhar paralelamente ao meu próprio país, como se o futuro de cada um não devesse também ser o futuro de todos.
 
Detesto que a justiça seja, cada vez mais, uma excepção; tão rara que temo que um dia deixemos de ser capazes de a reconhecer.
 
Odeio esta atmosfera de impunidade e insegurança que hoje respiramos, que intoxica, revolta, enoja.



Portas


27 anos depois do primeiro fôlego de ar respirado, do primeiro choro e do primeiro vínculo humano, revisito as minhas ideias sobre o mundo e a vida.
A partir do privilegiado pedestal que é o sofá quente de casa, o meu olhar repousa nos objectos e reconstrói-os no seu mais elementar significado. Como cada um deles, coisas desprovidas de vida e de vontade própria, também nós estamos repletos de funções, utilidades, mecanismos de acção e consequência.

Hoje estou fixada no funcionamento das portas.
As portas separam divisões diferentes, espaços contíguos que se pretende que não estejam permanentemente comunicantes. Contudo, criam uma ligação potencial, caso contrário ter-se-ia erguido uma parede de betão e tijolo, interrompendo totalmente a passagem.
Fechar portas é, por isto mesmo, um gesto transitório. A maioria das vezes a vida de uma porta é uma sucessão de acções contraditórias - abrir, fechar, abrir, fechar, abrir, fechar. Em momentos peculiares fica só encostada deixando entrar uma nesga de luz, em cenários mais drásticos roda-se a chave e fica trancada, guardando um tesouro ou escondendo alguma coisa indesejada.

Assim, tal como acontece no mundo materialista dos objectos, também nas relações humanas nenhuma passagem se encerra definitivamente fechando portas. O bom senso manda que se ergam paredes.
 
 

 

A Viagem

Eram sete e tal da tarde, não me lembro se chovia ou não.
Fechei a porta com entusiasmo apressado, uma electricidade fulgurante e apaixonada que começava na ponta dos dedos e se estendia ao âmago de mim.
Saltitei sozinha no pequeno cubículo enquanto o elevador percorria todos os andares - 7,6,5,4,3,2,1,0 - contagem decrescente para o teu sorriso rasgado. No carro, o murmúrio rítmico dos nossos corações ocupava o habitáculo espaçoso, e os meus olhos abriam-se mais e mais, no escurinho da noite, tentando captar cada imagem de ti.
Furtivamente, numa feliz e ingénua coincidência, os teus dedos tocavam os meus e a lua crescia, imponente e magnífica, no céu de breu absurdo. Sempre minha testemunha, mística e silenciosa, lançava o luar penetrante sobre as luzes agudas da cidade. Numa sinfonia saltitante, os ruídos roucos da estrada acompanhavam a nossa paixão, miraculosamente arrumada entre o coração palpitante e os dois pulmões, vital como o ar que neles entrava. Falávamos e a alma sugava tudo, na sofreguidão de quem nunca amou assim, na noite lisboeta, na estrada apinhada, no atraso da hora marcada.

Íamos ver um filme com amigos.  Sequência de imagens com enredo que, naquele momento, servia de pretexto para nos sentarmos lado a lado, as minhas mãos cautelosamente enlaçadas uma na outra para evitar que se lançassem de forma destemida sobre as tuas, num despudor não planeado.

Quando tudo terminou e as palavras se sucediam no écran, olhei para ti e sei que sorriste. Cá fora, a lua continuava tranquilamente à nossa espera, mãe-guia dos 15 quilómetros do regresso, baptizando com luz o nosso amor fulgurante, último abraço de dois condenados à morte.

Ensaio sobre a Mudança

Tornou-se um cliché dizer que as pessoas não mudam.

Na minha opinião o cliché não surge do nada, resulta da constatação empírica e vivencial de todos nós de que os traços de personalidade de alguém, uma vez adquiridos e sedimentados, na circunstância e ambiente externos, persistem ao longo da vida e se manifestam na maioria das atitudes e comportamentos.
 
Contudo não creio que sejamos, necessária e eternamente, escravos dessa combinação de genes e ambiente. A psicoterapia, nomeadamente a cognitivo-comportamental, baseia-se aliás nesse mesmo princípio, de que o conhecimento e auto-análise orientada podem desmontar as atitudes desadequadas e os pressupostos cognitivos que as antecedem, levando à mudança real de comportamentos.

Ocorre-me fazer uma comparação com as técnicas de fisioterapia - a reabilitação física em nada altera a anatomia mas faz melhorar muito a capacidade funcional. Da mesma forma, na minha perspectiva, embora as fundações da personalidade sejam definidas em idade precoce, é possível modulá-las de forma contundente, levando à mudança real.
 
Atrevo-me a postular que a mudança, embora francamente possível  é, claro, um processo difícil já que necessita que várias condições se verifiquem simultaneamente: 1. reconhecimento pelo próprio de que determinado tipo de comportamento é desadequado e causa sofrimento a si e/ou aos outros;
2. vontade de mudar;
3. convicção de que a mudança é possível;
4. recursos internos e externos que permitam a mudança.

Ou seja: as pessoas não mudam só porque alguém deseja que elas mudem e não mudam se não entenderem que o seu comportamento constitui um problema.

Mas, sim, as pessoas têm em si a capacidade potencial de mudar.

Improviso

Ainda e sempre esse olhar,
Auge de amor profundo,
Mãos tuas que anseio tocar
Moldando, a fogo, o meu mundo.

Não quero mais que o teu beijo
Perder-me nele, morrer assim,
Seres hoje aquilo que eu vejo,
Erguer-te da cinza e tu a mim.

A verdade e dois sopapos

Já não há paciência.
Reitero, já não há uma migalha de paciência.

Incomodam-me as pessoas com complexo de "personagem de filme". Vilões ou heróis, colocam-se em papéis por si rotulados, seguindo uma vida lírica e irreal.


Cada vez que falam ouvem-se atrás violinos, às vezes desafinados.

Por favor, onde estão as pessoas reais? Que vivem vidas reais, com os pés assentes no chão, sonhando nas alturas certas sem delírios de grandeza ou de perseguição ou de mártir, nem arrogantes nem falsamente modestas. Cientes daquilo que fazem bem e daquilo que fazem mal, procurando de forma realista reequilibrar a, já de si precária, balança das relações humanas.

Estou cansadíssima de violinos.
Toquem um tambor, ou ferrinhos, ou clarinete, ou tuba.

O violino é tão complexo e etéreo que ninguém consegue acompanhar o seu lirismo afectado durante muito tempo sem perder a sanidade.

Calem-se e olhem em volta.

Marina e Ulay

Marina Abramovic é uma artista performativa nascida em Belgrado em 1946. Tem uma extensa obra, explorando os limites do corpo e transportando a consciência humana até ao extremo.
Aos 30 anos, quando se mudou para Amsterdão, conheceu o artista alemão Ulay, com quem estabeleceu uma relação emocional e artística de simbiose, de fusão de corpos, mentes e egos artísticos que se prolongou durante anos.
Numa das performances conjuntas, Marina e Ulay uniam as bocas e expiravam o ar cada vez mais rico em dióxido de carbono um para o outro até ao estado de inconsciência. Esta representação procurava simbolizar a forma como algumas pessoas conseguem "sugar a vida" de dentro de outras, induzindo a sua destruição completa.
Quando ambos sentiram que a relação tinha chegado ao fim decidiram que a despedida deveria ser, também ela, simbólica e definitiva. Assim, na sequência de um sonho orientador de Marina, percorreram a Muralha da China - Ulay partiu do Deserto de Gobi e Marina do Mar Amarelo - e encontraram-se a meio do caminho para o último adeus.
 
Depois de décadas de absoluto afastamento, em 2010, numa exposição de homenagem à obra de Marina, realizada no fabuloso MoMA de Nova Iorque, Ulay aparece de surpresa numa das demonstrações performativas de Marina em que ela partilhava um minuto de silêncio com cada elemento do público.

Este é o vídeo desse momento. Enjoy.

Dissertações nocturnas

Depois de ver "O Impossível" e de constatar que o fim de semana terminou, ocupo estes últimos minutos antes do sono com breves dissertações.

Uma absurda dor de ouvidos impede-me de fazer a minha habitual catarse musical da uma da manhã e os olhos já não aguentam a leitura de meia página do meu livro de cabeceira.
 
Lá fora, dois ou três adolescentes gritam e pontapeiam caixotes do lixo, no estranho mas frequente vandalismo de domingo à noite. O ruído ecoa com revolta na rua deserta, como se as latas velhas, os trapos e os restos de comida espalhados na calçada trouxessem sentido àquelas vidas sem rumo.
 
Se ligasse a TV para ver o desfile da carpete vermelha já não me deitava tão cedo, o olhar preso às lantejoulas e reflexos coloridos de Hollywood.
Já me cansa a Grândola, e o Relvas, e o Papa, e o Gaspar, e o frio gélido, e os casacos grossos, e o desemprego, e esta estúpida dor de ouvidos. De certeza que já cansa a todos.

Fecho os olhos e lá estou eu na jangada do Pi, rodopiando à superfície do mar, num mundo em que os tigres comem peixes voadores e as suricatas dormem nas árvores.

Meia dúzia de seta luminosas apontam o caminho para o quarto e tenho que obedecer. Boa noite, mundo. Até já.

?

A noite vai longa, a manta felpuda sobre as pernas, as pálpebras cansadas e relutantes.
Os últimos dias passam-me rapidamente na memória, sucessão de slides desfocados, imagens irreais como se a vida fosse estática e feita só de cores primárias.
É no silêncio deste último suspiro de vigília que as minhas mãos ficam mais vazias, consolando-se uma à outra numa recordação mecânica das tuas.
Na confusão criativa destes minutos recordo a paradoxal sabedoria popular:
"Quem espera, sempre alcança."
"Quem espera, desespera."

Reformulo, mentalmente: "Quem espera, desespera e, como se não bastasse, nem sempre alcança".

Ainda assim, se o coração teima em não desistir, a lógica afaga-o de mansinho e deita-se com ele em concha, num último sono partilhado.

Memory Machine





I miss you and the memory machine
And the factory where we make something of dreams
And we wandered around your streets
With sewn on button eyes our ears become our memories

The blind loving the blind
And our voices become our fingers
And you touched me with your song
And touched me all night long

I miss you
I miss you

And the memory machine making whiskey from the things
We no longer need and you kissed me
But I was too drunk to really know
That you loved me enough to watch me go

I miss you

O muro de Berlim


Somos, assim, vozes sem rosto,
Frases sentidas em lábios cerrados.
Estátuas vis, de bronze e desgosto
Monstros inertes, demónios criados.



Somos, assim, o esqueleto do muro
Feras de guarda, de sangue e terror
Rudes cortinas de ferro obscuro
Forjadas, erguidas no âmago duro
Das almas perdidas e plenas de dor. 




Rascunhos

Descobertas incríveis têm lugar quando se explora a área de rascunhos da caixa de e-mail. Se excluirmos uma fabulosa compilação de imagens sobre os mitos da hipnose como método adjuvante na Psiquiatria, aqui fica o excerto meu mais interessante que por ali repousava, que aqui coloco descontextualizado e cru:


"Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os

dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.

O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas

amplia o vazio que cada um traz dentro de si."

Felizes para sempre

Quando o casamento acabou e tu fazias as últimas despedidas, eu agarrei a última orquídea branca da mesa nupcial e fugi pelas portas entreabertas do salão.
Cá fora a lua cheia ia alta, gigante testemunha da minha pequena fuga, derramando um luar ténue e cúmplice sobre as águas calmas da piscina.
À minha volta os arbustos erguiam-se como fantasmas, em estranhos recortes nocturnos, transformando aquela cena inusitada em algo sombrio e melancólico.
A mão, coroada enfim com a dourada aliança do compromisso, caminhava em minúsculas marés sobre a superfície da água. O vestido, antes imaculado, cobria agora o relvado húmido sem que eu me importasse. Todo aquele cenário era um fulgor refrescante depois do dia abafado, fútil e ardiloso que ali se findava, a flor amachucada na minha mão morrendo comigo, pétala por pétala, exalando o seu último odor de liberdade.
No âmago de mim, como um trovão de culpa insuportável, gerou-se o desejo de deslizar na margem de pedra áspera e inalar com todas as forças a água amarga e fria da piscina. No meu pequeno delírio, a minha alma imortal sobrevoava o cenário idílico por ti imaginado, paraíso de cisnes e cascatas de champanhe, e fixava o corpo inerte e flutuante, maravilhoso vestido de cauda ensopado cobrindo o centro daquela mentira.
Quando por fim se ouviu o ruído das portas de correr e o eco dos teus passos convictos no caminho calcetado eu acordei do meu sonho mórbido e fixei o meu olhar preto de mágoa em ti. Irrepreensível na tua postura de estátua grega, não revelaste um segundo de surpresa por me ver assim, despojada de toda a vergonha, semi-deitada entre os nenúfares e as colunas jónicas.
Seguraste a minha mão com firmeza e eu segui os teus passos, submissa, relembrando os motivos de todo aquele teatro de princesas, a aliança pesando toneladas no meu dedo fino, as lágrimas contidas na caixa do meu peito, guardadas para um dos raros momentos de solidão.
Atrás de mim, os arbustos riam e balançavam ao sabor do vento e o despojo da orquídea navegava de forma caótica, afundando por fim, sem hesitação, como uma consciência pesada.

Sem título

Quando a noite chega e preenche tudo à minha volta, questiono-me se as palavras ditas ficam guardadas no tempo e espaço em que aconteceram.
Poderei recuperá-las um dia? 
Ficarei para sempre impressionada com o facto de momentos que duraram minutos ou horas, poderem permanecer sedimentados na memória durante anos a fio, vívidos como quando ocorreram, doridos e emocionantes como um murro forte ou um beijo intenso.
Engulo em seco como naquele dia no parque de estacionamento, sinto o muro áspero onde me sentei e ouço o eco das palavras ditadas e assinadas.
Recordo o sabor salgado das lágrimas enquanto me deixava escorregar no banco do carro, olhos cravejados na água calma enquanto o sol desaparecia com os meus sonhos.
Embrulho-me com força na manta imaginária, enquanto relembro o frio gélido daquela manhã doirada, penetrante e cru como o final que antecipava.
Quando os recordo, dias intermináveis da minha vida, magoam menos do que quando surgem de forma imprevista, no inocente intervalo das tarefas quotidianas, manchando períodos de incólume tranquilidade.
Gostava de os guardar a todos em frascos rotulados, dispostos numa aberrante prateleira de recordações, num quarto para sempre trancado, longe da superfície da consciência. Gostava de parar este sabor agridoce na minha boca, a saudade que evoca, o lírico desejo de voltar atrás no tempo e transformar o choro em momentos felizes.
A distância que me separa de ti, memória vagarosa e linda, são 3 dias que parecem 3 eternidades. Peito rasgado a sangue frio, vontade de o deixar vazio até que os planetas se realinhem e tu regresses.
Posso voltar ao dia de hoje? Ao mês passado? Ao ano passado?
O novelo que me deixaste na mão permanece denso, insuportavelmente denso. Em vão, tentei desfiá-lo com os dedos gelados mas não sou capaz, preciso de ti e do teu calor vital para reencontrar a ponta solta.

A Vela

Não fiz até hoje outra coisa que não fosse acender toda e qualquer velinha que me pusessem à frente.

Com parcimónia, dedicação e até alguma condescendência fiz luz no mais escuro breu, usando o mais desengonçado pedaço de cera. 

Pacientemente, sem apressar o normal curso das coisas, aguardei, uma e outra vez, que o pavio se esgotasse, malditas velas sempre finitas, e nada mais restasse além de uma ruína de cera sólida, grosseiramente oval e totalmente irrecuperável.

No escuro, nem me dava ao trabalho de limpar estes sucessivos vestígios do fracasso da combustão, pelo que, cada vez que nova vela surgia, ainda o cadáver da anterior lhe servia de apoio, no agoiro de um triste e repetitivo fim.

Eventualmente, cansam-se as mãos e a alma e a cabeça de levar a cabo tarefa tão ingrata. Vão as velas todas para o lixo e compro um candeeiro.

Colisão

Colidimos os dois numa espiral absurda e surpreendente.

Em câmara lenta, o novelo que vinha enrolando há vários dias desvelou-se e caiu no chão, revelando a minha alma nua, num desconcertante grito gutural.

Não sei quanto tempo passou, nem sei se há mais novelos para desvendar, mas fico para já aconchegada neste espaço da minha memória, galgando etapas de reconhecimento interno, regozijando uma e outra vez com a aparição deste dia.
A manhã trará o mar e o som das ondas e talvez tudo se apague, na espuma salgada das horas, sem deixar rasto. Quem sabe, a aparição persiste e se transforma numa escadaria sem tempo, infinita, rumo à nuvem mais alta da condição humana.

Amadeu

Amadeu António Pereira nasceu na aldeia e na aldeia se criou. Fazia tudo: era barbeiro, sapateiro, sacristão, encenador. Casou-se novo, teve 6 filhos, amou a mulher até ao fim, foi teimoso e brilhante até ao último suspiro.
Já com 70 anos, contrariando as inevitáveis incapacidades da velhice, rumou uma vez mais à ribeira da aldeia para apanhar peixes, como sempre fizera. 
Planeou tudo: ia acender o rastilho da pequena bomba e atirá-la para o meio das águas, num estrondo abafado o leito rugiria e os peixes, atordoados, disparariam no sentido da superfície para morrerem nas redes dos homens.
Mas nesse dia de sol os olhos e os reflexos falharam e a bomba explodiu na mão fechada, deixando metade do corpo em carne viva. A dor era insuportável e o sangue escorria pelos dedos mutilados. Embrulharam-no num lençol branco molhado e levaram-no para a cidade.
No final da estrada de terra a mulher, Cândida, fez a sua despedida num gemido surdo, convencida que jamais o veria. Por medo, não entrava naquela máquina maldita com motor e faróis que lhe levava o homem para o hospital.
Contra todas as expectativas, Amadeu voltou meses depois, cambaleante, a mão sem dedos encostada ao peito orgulhoso de sobrevivente. Cândida recebeu-o num abraço e renasceram os dois. Aos 70 anos caminhavam lado a lado pela aldeia e iam de mãos dadas para a horta.
Dois anos depois, durante a noite, no silêncio da aldeia deserta e envelhecida, Amadeu acordou subitamente com frio, tapou-se melhor com a coberta puída, inspirou pela última vez o ar abafado do quarto, sentiu ao seu lado a presença fiel da mulher e morreu tranquilamente.
Amadeu António Pereira nasceu na aldeia e na aldeia se criou, teve 6 filhos e amou a mulher até ao fim. Amadeu era meu bisavô.

“For never was a story of more woe than this of Juliet and her Romeo.”





Saudade

A vivência da saudade é uma sensação curiosa: começa por ressoar incessantemente, como um grito desesperado, para depois se ir atenuando devagar, sem nunca desaparecer completamente.
Primeiro é um nó na garganta, uma tontura, uma inquietação persistente, como a abstinência de uma droga deliciosa. Depois é um peso no peito, uma memória, um desejo oculto que nos persegue no subconsciente.
Quando deixa de gritar ao ouvido, a saudade passa a aparecer nas esquinas dos momentos, entre um pensamento e outro, num sonho, numa lembrança, num local.
Passa a ser a recordação de um cheiro, do toque, das mãos quentes, do beijo forte. Passa a ser a vontade de voltar atrás no tempo, de agarrar de novo os momentos, de reincidir uma e outra vez, sem medo. Passa a ser a idealização de algo que se desmoronou, sem razão ou com todas as razões do mundo.
Na continuação dos dias transforma-se numa companhia silenciosa, quase confortável, afagando as tristezas quotidianas com gotas de uma cumplicidade passada, que talvez nunca mais se repita.
Permanece a secreta vontade do regresso, guardada num cantinho da alma, uma promessa por cumprir que aguarda o momento de regressar à superfície numa conquista triunfante, vencendo o tempo, o mundo, a adversidade e as expectativas.

Rédeas


Há quem diga que o cavalo deve correr solto, livre, sem restrições de qualquer tipo. 

Hoje aprendi que é mentira.
O cavalo deve ter regras, estar devidamente treinado, apetrechado com ferraduras resistentes, uma sela segura e rédeas. Principalmente, rédeas.
Assim, quando o terreno se torna instável e lamacento, puxam-se as rédeas e controla-se a marcha. Devagar, avalia-se a segurança do solo e consideram-se as alternativas. Por vezes, o terreno parece bom e revela-se depois movediço ou minado, por isso há que progredir com precaução até estar praticamente garantido o mínimo conforto no percurso.
Infelizmente, determinados momentos exigem que as rédeas sejam puxadas com força obrigando a travagens bruscas durante um caminho profundamente apetecível.

Haverá sempre outro caminho mais à frente, rumo a um destino melhor.

O súbito interesse das coisas desinteressantes

É nos momentos de estudo intensivo, mais particularmente naquela fase em que há muita pressão mas ainda faltam alguns dias para o exame, que acontece um fenómeno fantástico, comum à maioria dos indivíduos da raça humana que dedicam uma parte importante do seu tempo à contemplação intensiva de apontamentos, tratados, livros, consensos ou outra literatura de índole semelhante: as coisas mais monótonas e casuais da vida quotidiana tornam-se, subitamente, coisas interessantíssimas.

O voo anárquico de uma mosca, nomeadamente quando insiste em colidir insistentemente com a janela fechada, o movimento das folhas das árvores da praceta em frente quando faz vento, o barulhinho que se gera quando fechamos a tampa do marcador fluorescente com uma determinada força, todos estes fenómenos se revestem de uma magnificência inesperada quando o estudo é a mais imperativa prioridade.

Em situações dramáticas e extremas, que ocorrem especialmente quando o tema do estudo é tão relevante para a vida real como saber a cor do tecto quando se está num quarto às escuras com os olhos fechados, o folheto de promoções do Lidl ou o programa da manhã da TVI podem tornar-se apelativos.

Ultimamente, dou por mim a fotografar o mobiliário doméstico, em reportagens dignas da "Casa Cláudia", dada a impossibilidade de ir fotografar o mundo exterior sem me afastar, física e mentalmente de forma irremediável, da minha tarefa presente.

A todos que me compreendem e que comigo se solidarizam: boa sorte!

Neruda


Saudade é amar um passado que ainda não passou
É recusar um
presente que nos magoa
É não ver o
futuro que nos convida.

Pablo Neruda

Histórias - Capítulo VI


"Desde ontem que tento lembrar-me onde deixei o meu orgulho mas não consigo. 
Numa espécie de demência selectiva nem sei já se o ontem foi mesmo ontem ou se foi há duas semanas, um mês, um ano, uma vida inteira.
Em volta, não me reconheço em nada nem em ninguém. Em desespero corro para a rua num intervalo da chuva intensa e procuro algum traço familiar na expressão turva que vai aparecendo nas poças de água.

Reconheço rostos na rua, trazem cartazes com setas apontando em sentidos contrários, sinais de stop, de sentido único, de sentido proibido. As folhas das árvores agitam-se sem vento, as pessoas vocalizam sem ruído, eu estou descalça.

Numa manifestação silenciosa e assustadora todos se aproximam numa marcha, impondo aos meus olhos marejados aqueles símbolos caóticos e inúteis.
Corro rua abaixo, em pânico, quando de repente o horizonte se transforma e a estrada  acaba num abismo absurdo. Dentro de mim, sei que devo saltar. Numa espiral sem tempo nem sentidos percorro o vazio da minha imaginação e caio em solo firme.
Passaram cem anos ou um segundo, não sei, quando finalmente dou por mim no limbo entre o sono e a realidade, no ápex de um sonho.
O tecto do meu quarto começa a surgir nublado e, lentamente, os meus braços e pernas ganham vida, renascendo para o mundo da vigília. Lá fora, os ruídos da azáfama da manhã preenchem-me os ouvidos e eu suspiro de alívio."

Queda livre

Rua cheia e ninguém estranha,
O coração que se despenha,
Triste ser, sem glória, inerte,
Nem sangue verte, desmaia só.

Gente passa e nem repara

No estranho ser que ali tombara
Fosse aquilo habitual
Sem dor nem mal, sem meter dó.

Palpita, ainda, quando enfim
Alguém que ali passava perto
Tropeça nele e só assim
O devolve ao peito aberto.

Histórias - Capítulo V

"Invadia-me uma náusea de te ver assim, cego pelas circunstâncias, mal aconselhado, completamente perdido com um mapa na mão.
O cansaço preenchia-me de uma forma absurda, impossível, vinha de dentro e espalhava-se por todo o lado, tentáculos opressores que quase me impediam de mover.
Ainda assim saí de casa, lábios pintados, sombra preta nos olhos, o primeiro vestido do armário que me pareceu adequado para um jantar com uma vela, dois cálices de vinho e nenhuma expectativa. Disse que não ia fazê-lo mas isso, agora, pouco interessa.
- São só umas horinhas para constatar o óbvio, mal não faz - pensei eu, enquanto o carro começava a trabalhar e os vidros desembaciavam. Esforçava-me por me manter serena mas a minha imaginação fugia para ti: as mãos frias no volante, a lua em barco pregada no céu, a música na rádio, eram engodos para o meu cérebro incauto, dominado ainda pela tua presença.
Estacionei. Não me lembro como. Estava demasiado entretida a avaliar a real probabilidade daquela noite se transformar num verdadeiro desastre. 
Ele já estava à porta do restaurante, alto e discreto, casaco comprido escuro e um sorriso cativante. Dois beijinhos e um olá grave tranquilizaram-me.
- Talvez isto não corra assim tão mal - concluí.
A comida era boa e o vinho suave, os minutos passaram numa conversa simples e agradável sobre viagens, amigos comuns, tempos de escola e hobbies. Na fotografia mental daqueles momentos vejo-me tranquila e confiante. Nem um flash de ti durante horas a fio.
Depois da conta saímos sorridentes para o exterior, o frio gélido da noite a convidar insistentemente a procura de um abrigo quente. Seguimos esse convite irresistível da meteorologia e entrámos no bar em frente. Canapés largos e acolchoados e um cartaz grande da Audrey Hepburn na parede compunham um ambiente agradável. Por inúmeras vezes ele tocou "casualmente" na minha mão e o sorriso estava mais largo, de uma sinceridade desarmante.
Por uns minutos a sensação de que a vida ia continuar sem mácula preencheu a minha mente e eu acreditei naquilo que, há meia dúzia de horas atrás, julgava impossível.
Quando finalmente saímos gerou-se aquele familiar clima de tensão.
- E agora? - pensei. A frase seguinte era determinante, analisei rapidamente a situação e disse, com serenidade:
- Gostei muito mas faz-se tarde e amanhã é dia de trabalho. O meu carrinho está ali, sozinho na noite, a precisar que eu o leve de volta para um ambiente familiar e os meus pés estão cansados destas maravilhosas armadilhas a que chamam sapatos de salto alto.
Ele sorriu, pensamentos agora indecifráveis. Não percebi se estava desiludido ou acomodado com o rumo das coisas. Manteve admiravelmente a postura de cavalheiro e acompanhou-me até ao carro enquanto sugeria um próximo encontro para "um destes dias".
- Claro - disse eu, sorridente, no fundo a lamentar não ser capaz de sentir aquilo com um entusiasmo gritante.
Liguei o motor e a noite voltou a fechar-se. A estrada abria-se ampla para mim e eu imaginava-me assim, pequeno insecto num universo enorme, completamente esmagada por aquela lua branca e solitária que pingava memórias de ti."

A minha avó


A minha avó viveu no paraíso, ou no inferno, não sei bem.

Sei que dormiam os 6 numa laje fria ou num palheiro ao pé do gado.
Sei que nessa mesma laje se faziam os partos e a minha avó esperava na cozinha, pés descalços na madeira tosca, aquecendo os panos, enquanto a parteira da aldeia colocava os irmãos no mundo.
Sei que as galinhas corriam livremente no curral mas os ovos não se podiam comer, o dinheiro da venda era indispensável.
Sei que o porco morto em Outubro tinha que durar um ano inteiro.
Sei que até ser adolescente nunca tinha calçado uns sapatos dignos desse nome, que saiu da escola porque educar os homens era prioritário e que levava o almoço aos irmãos, merenda escassa, quando eles trabalhavam nas minas de volfrâmio.
Sei que adorava o baile da aldeia, dançava e tinha dezenas de amigas.
Sei que corria livre nos campos semeados, que cantava nas vindimas e tecia panos de linho branco, perfeitos, que hoje estão guardados em gavetas.
Sei que no Inverno a geada matava, dos telhados toscos pendiam estalactites e a família aninhava-se à lareira, iluminada por uma candeia de petróleo ou azeite.
Sei que o forno era comunitário, que o pão era de todos, num simbolismo daquela união de vidas difíceis.
Sei que no Verão, quando não trabalhava de sol a sol, corpo bronzeado e cabelo numa trança grosseira, tomava banho na ribeira, apanhava peixinhos e ouvia os pássaros.
Sei que não conhecia o mundo e que, quando chegou a Lisboa, pensou que do Cristo Rei podia ver a aldeia beirã onde nascera.

Agora, sentada no sofá da sala, diz que mesmo na miséria era feliz. E eu acredito.