O descanso do blog

Informo os leitores resistentes deste blog que ele vai entrar em período indeterminado de hibernação.
Até ao regresso encontram-me aqui, no blog Entrelinhas, onde vos incito a participar activamente.

Policiar o Amor?


Quem já teve o imenso prazer de visitar Paris conhece, certamente, a famosa Pont des Arts. Construída no início do século XIX, durante o domínio de Napoleão I, sobreviveu às duas Grandes Guerras e continua a projectar-se harmoniosamente entre as duas margens do Sena. Nos últimos anos, num acto de romantismo, os casais de namorados colocam cadeados com os seus nomes gravados no corrimão da ponte atirando depois a chave para as águas do rio, em sinal de compromisso.
Em resposta a este fenómeno colectivo, que se tornou um dos símbolos da cidade do amor, a câmara municipal ordenou o policiamento da ponte no sentido de tentar impedir as pessoas de atirarem ao rio as chaves.

A este propósito, ocorre-me analisar a importância dos rituais na vida das pessoas, a forma como se generalizam e perpetuam e como lhes são atribuídos significados incríveis. Desde os rituais de passagem à idade adulta das tribos mais ancestrais do planeta até ao casamento, à nossa volta sempre se cultivaram os eventos simbólicos. Desta forma, toda a comunidade sabe que um determinado indivíduo passou a uma nova fase da sua vida ou tomou uma importante decisão.

Na verdade, nada mudará depois de atirada a chave ao rio. Nenhuma dúvida se dissipará e nenhuma certeza se tornará real. Então, porque é tão importante para tanta gente fazê-lo?


Púrpura

Da minha memória escarlate, em tudo revolvida pelo teu carácter de tornado encantador, escapam-se de quando em vez momentos de um passado recente, escorrendo saudade e êxtase, que se acabam nas minhas unhas de púrpura cintilante, batendo as teclas do computador novo.

Os dias escorrem, agora, com tranquilidade, rumo a um destino indecifrável, que tantas vezes teima em levar-nos juntos no mesmo barco, contra as tremendas vagas. Nestes dias de precário equilíbrio, lábios rasgados de sal e sede, mar inerte, enorme, anil, vou sorvendo ternos goles da minha consciência cristalina e assim resisto. Quando, exausta, me encolho sobre mim e repouso nas tábuas ásperas do fundo do barco, tu afagas-me o cabelo ondulado e lanças um sopro de calma perfumada que me adormece.

O futuro é um caminho traçado em águas que ninguém conhece e termina em solo firme de lugar algum.

O meu rectângulo


É impressão minha ou anda muita gente a tentar boicotar o "nosso rectângulo" ?

Eu gosto deste meu rude quadrilátero, de costa vasta e clima agradável, de gentes mornas e pacíficas que fazem revoluções com cravos e se manifestam calmamente, mesmo quando o chão se vai rachando debaixo dos próprios pés.
O que eu não gosto é que agarrem em todas estas pessoas e lhes atribuam a relevância de fantoches sem nome, sem densidade, sem direitos e sem sonhos. O que não gosto é de pavões em fato e gravata que nada sabem da vida real, que vomitam números em catadupa e que nos puxam o tapete.

Gosto ainda menos desta filosofia do "come e cala", dos fins que justificam os meios, especialmente quando os fins afinal são todos mentira.
Revolta-me ouvir e não conseguir acreditar numa palavra, ver-me impotente, sentir-me cada vez mais a caminhar paralelamente ao meu próprio país, como se o futuro de cada um não devesse também ser o futuro de todos.
 
Detesto que a justiça seja, cada vez mais, uma excepção; tão rara que temo que um dia deixemos de ser capazes de a reconhecer.
 
Odeio esta atmosfera de impunidade e insegurança que hoje respiramos, que intoxica, revolta, enoja.



Portas


27 anos depois do primeiro fôlego de ar respirado, do primeiro choro e do primeiro vínculo humano, revisito as minhas ideias sobre o mundo e a vida.
A partir do privilegiado pedestal que é o sofá quente de casa, o meu olhar repousa nos objectos e reconstrói-os no seu mais elementar significado. Como cada um deles, coisas desprovidas de vida e de vontade própria, também nós estamos repletos de funções, utilidades, mecanismos de acção e consequência.

Hoje estou fixada no funcionamento das portas.
As portas separam divisões diferentes, espaços contíguos que se pretende que não estejam permanentemente comunicantes. Contudo, criam uma ligação potencial, caso contrário ter-se-ia erguido uma parede de betão e tijolo, interrompendo totalmente a passagem.
Fechar portas é, por isto mesmo, um gesto transitório. A maioria das vezes a vida de uma porta é uma sucessão de acções contraditórias - abrir, fechar, abrir, fechar, abrir, fechar. Em momentos peculiares fica só encostada deixando entrar uma nesga de luz, em cenários mais drásticos roda-se a chave e fica trancada, guardando um tesouro ou escondendo alguma coisa indesejada.

Assim, tal como acontece no mundo materialista dos objectos, também nas relações humanas nenhuma passagem se encerra definitivamente fechando portas. O bom senso manda que se ergam paredes.
 
 

 

A Viagem

Eram sete e tal da tarde, não me lembro se chovia ou não.
Fechei a porta com entusiasmo apressado, uma electricidade fulgurante e apaixonada que começava na ponta dos dedos e se estendia ao âmago de mim.
Saltitei sozinha no pequeno cubículo enquanto o elevador percorria todos os andares - 7,6,5,4,3,2,1,0 - contagem decrescente para o teu sorriso rasgado. No carro, o murmúrio rítmico dos nossos corações ocupava o habitáculo espaçoso, e os meus olhos abriam-se mais e mais, no escurinho da noite, tentando captar cada imagem de ti.
Furtivamente, numa feliz e ingénua coincidência, os teus dedos tocavam os meus e a lua crescia, imponente e magnífica, no céu de breu absurdo. Sempre minha testemunha, mística e silenciosa, lançava o luar penetrante sobre as luzes agudas da cidade. Numa sinfonia saltitante, os ruídos roucos da estrada acompanhavam a nossa paixão, miraculosamente arrumada entre o coração palpitante e os dois pulmões, vital como o ar que neles entrava. Falávamos e a alma sugava tudo, na sofreguidão de quem nunca amou assim, na noite lisboeta, na estrada apinhada, no atraso da hora marcada.

Íamos ver um filme com amigos.  Sequência de imagens com enredo que, naquele momento, servia de pretexto para nos sentarmos lado a lado, as minhas mãos cautelosamente enlaçadas uma na outra para evitar que se lançassem de forma destemida sobre as tuas, num despudor não planeado.

Quando tudo terminou e as palavras se sucediam no écran, olhei para ti e sei que sorriste. Cá fora, a lua continuava tranquilamente à nossa espera, mãe-guia dos 15 quilómetros do regresso, baptizando com luz o nosso amor fulgurante, último abraço de dois condenados à morte.