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Sinto os olhos tão cansados... Não sei se são as horas intermináveis a fixar as pequenas letrinhas ou se é o meu pensamento que não pára... Filmes reais e hipotéticos a passar diante de mim.

E isto é só o princípio...

Histórias - Capítulo II

A noite estava clara das dezenas de candeeiros acesos, as minhas mãos apoiadas no corrimão gélido, a pintura do metal a descascar grosseiramente sob os meus dedos. Ainda assim fiquei ali, imóvel, fixando o desenho geométrico que as pedras da calçada formavam no chão do largo.

De todo o lado a orquestra tocava, músicos invisíveis da minha mente, e eu acreditava com todo o meu ser que podia voar dali para fora, balançar-me entre as varandas de Arte Nova e dançar a uns metros do chão sem que ninguém se apercebesse.

O céu estava negro, as nuvens eram vultos grotescos guardando dos olhos incautos o brilho das poucas estrelas visíveis. A determinada altura os metais da orquestra soaram com mais intensidade e eu elevei-me um pouco mais no ar, profundamente seduzida pela melodia...

Dreams of the summer night
Tell her of all the keeps
Watch when it's slumber bright
She sleeps my lady sleeps
She sleeps my lady sleeps


Meia dúzia de gaivotas invadiram o quadrado de céu anil e os meus olhos cravaram-se no seu voo perfeito imaginando que também elas ouviam a música, as penas ondulando como o meu cabelo.

Numa das janelas havia uma grande tela branca projectando a preto e branco o meu sonho daquela noite de Verão. Os holofotes fixaram-me e eu rodopiei numa possessão estranha e incontrolável. Via-me naquele estranho filme: as gaivotas, a orquestra, o corrimão, o vento frio, a luz, uma terrível cefaleia................... she sleeps my lady she sleeps...

She sleeps...

She sleeps...

Histórias - Capítulo I




Um dia sentou-se Deus à beira do lago e juntou entre as mãos um punhado de argila húmida. Pensou uns minutos e formou na mente a imagem do ser frágil que surgiria dos seus dedos de artesão.

Para dizer a verdade, não sei se este pensamento era inédito, muito menos sei se este punhado de barro era muito do diferente do anterior ou do que o seguiu. Sei apenas isto que aqui vos conto porque mo deixaram escrito numa das paredes da Alma, naquela oposta às duas janelinhas, para que o pudesse ler vezes sem conta, assim que o dia clareasse.

Quis então Deus que a figura de barro tivesse em si um pequeno quarto a que chamou Alma, por onde entrassem e ficassem todas as coisas vistas, sentidas, percebidas e assimiladas através das duas janelinhas. No quarto quis Deus que vivesse, enquanto o coração não se cansasse de bater, uma menina, cuja única função era recolher todas as informações que chegassem e trabalhá-las para que dessem um significado à vida da figurinha de barro, desde o primeiro choro ao último suspiro.
Para que tudo corresse bem, a menina devia trabalhar arduamente, sem descanso, empilhando folhas de informação com uma perfeição inabalável. Mesmo à noite, quando lá fora todas as figurinhas de barro dormiam, a menina sentava-se num dos cantos do pequeno quarto e planeava metodicamente o dia seguinte.
Às vezes o cansaço era tão avassalador que a menina tentava em vão fechar os olhos e não pensar em nada, mas não conseguia. Ainda assim, se se esforçasse muito, dos olhinhos tristes escorriam gotas de água morna que ela nunca soube o que significavam.

Uma ou duas vezes por semana, olhava através das janelinhas lá para fora e sorria ao ver que a sua figurinha de barro parecia ser feliz, caminhando ordeiramente ao lado das outras figurinhas de barro, tal como fora programada para fazer.

E é assim que me recordo dela. As mãozinhas espalmadas no vidro da janela, os olhos muito abertos, límpidos e ingénuos, para sempre condenada a viver num quartinho sem portas, por um Deus que nunca soube quem era.

Meu Amor!

Há 150 anos, mais dia menos dia, mais lua cheia menos lua cheia, mais época das colheitas menos época das colheitas, uma jovem sentava-se calmamente à janela de sua casa, um longo pano de linho fino estendido sobre os joelhos e a agulha dançando habilmente nas mãos.

Tantas outras jovens fariam ao mesmo tempo aquela mesma tarefa, cumprindo o seu destino, consumando com os dedos primaveris e ingénuos o desígnio já cumprido por gerações e gerações de mulheres antes de si. Mas nenhuma imaginava, como ela, naquela tarde, motivo mais profundamente sincero para bordar na superfície branca e suave do linho corações de vermelho palpitante.

Hoje toco esse mesmo tecido e projecto-me numa espiral de tempo, segurando o peso das expectativas, da ansiedade, dos projectos e dos receios da jovem noiva. O coração jovem da minha trisavó palpita-me entre os dedos e dá-me a sensação única de ser dona de um pequeno e maravilhoso tesouro.

A um canto do lençol as iniciais M.A. bordadas no mesmo ponto delicado. Maria Ana.

No meu imaginário projectam-se outras palavras, sentidas talvez por ela quando escolhia cuidadosamente a forma das letras e a cor da linha. Meu Amor.