No próximo ano... sejamos melhores

Eu era a lagarta frágil e tímida que se demorava nos veios frescos da folha.
Roliça e redundante no universo verde daquela floresta.
Guiada pelo instinto seguia o percurso cintilante das gotas de orvalho até ao inevitável abismo do vértice vegetal.
No fim do caminho a gigantesca disputa, os meus pequenos olhos esbugalhados perante a atmosfera infinita.
Iniciei o árduo trabalho de me enrolar em seda. Rodopiei até à exaustão numa dança fervorosa e geneticamente determinada.
No fim eu era apenas um corpo amorfo e imóvel à espera que os dias passassem. Nem morta, nem viva, no limbo da existência, esqueci quem era e transformei-me em algo diferente.

Inevitável

O tempo passa. Dias, meses, anos. Passa. Acontece.

Constatado esse óbvio facto resta-me a surpresa de perceber que, apesar disso, tentamos enganar-nos prendendo os momentos entre os dedos, segurando-os de forma possessiva como se assim o futuro não chegasse ou persistisse como um presente imutável ou repetitivo.

É curiosa a forma como rotulamos certos desfechos de inevitáveis e ainda assim lutamos contra eles com garras, sangue e lágrimas. Punhos cerrados contra o muro.
- É um muro, bolas! Não se moverá um milímetro perante duas mãos nuas ou uma carga de ombro. Ficará na mesma. Rígido e omnipresente, metros de betão até ao céu, impossíveis de transpor.

O 5º sentido

Há muito tempo atrás li num livro que o sentido que mais memórias evoca é o olfacto.

Anos depois estudei anatomia do sistema nervoso e percebi que fazia sentido que assim fosse porque as sensações olfactivas são interpretadas por uma parte do cérebro muito antiga em termos evolutivos.
Talvez seja por isso que os cheiros desencadeiam sentimentos tão fortes e difíceis de controlar, impulsos instintivos e até rudes na maneira como nos ocupam o pensamento e nos orientam para um determinado momento ou época do passado.
Talvez seja também por isso que os perfumes são coisas tão pessoais, tão marcantes e tão difíceis de entender sem ser naquela primeira pessoa que os usou perto de nós.

Lembro-me de arrumar uma malinha de coisas que tinha no meu quarto há uns bons meses atrás e de encontrar alguns frascos de perfume, ainda com um bocadinho de líquido no fundo, à espera de serem encontrados no meio da tralha. Cada um deles era um pequeno reservatório de memórias, boas e más, algumas aparentemente irrelevantes mas que se colaram àquele odor e por alguma razão permaneceram naquele pedacinho de cérebro.

É também curioso aquele fenómeno que, penso, reconhecerão: quando um cheiro nos marca (pela persistência ou pela ocasião) passa a isolar-se e a destacar-se de todos os outros, por mais intensos e fortes que sejam.

O olfacto é subestimado, como muitas das memórias que chama à superfície. É imperfeito e inexacto; não se pode gravar para sentir depois, como se faz com uma imagem ou uma música. Traz-nos do fundo da alma (se ela existir) o desejo ou a aversão, a paixão ou a repulsa, o amor ou a raiva.

Laringite

s,f, inflamação da mucosa laríngea de origem infecciosa, doença que costuma manifestar-se com os sintomas típicos de uma infecção das vias aéreas superiores: dor de cabeça, cansaço, dores musculares e febre, a inflamação da laringe provoca uma súbita alteração da voz, com a típica rouquidão ou até com afonia, além de uma sensação de aspereza na garganta que produz rouquidão e tosse seca.


É para eu aprender a não dizer que a mim ninguém me cala!

A Roleta


Quem é que aposta a sua fortuna no mesmo número duas vezes seguidas?

Tempestade


O melhor daquele dilúvio era o parque de estacionamento vazio e a espécie de silêncio da queda rítmica das gotas no alcatrão.
O melhor da tempestade eram as lágrimas solitárias do céu em vez das minhas, baptizando tudo à minha volta.

Juro que não vi ninguém durante aqueles 20 minutos.
Juro que da rádio eras tu que cantavas, a mesma música tantas vezes seguidas.

Os ramos das árvores numa agitação molhada, manipulados por uma força maior do que eles, ficaram gravados na minha memória.
Não há nada a questionar quando a verdade nos impele para aqueles acordes mágicos.
Não há muito a acrescentar depois de aprendermos que o som de uma gota de água no vidro é uma nota musical.

(abrem-se com estrondo os portões da memória)

Não restava outra música depois da guitarra estragada, encostada à estante velha, as entranhas expostas ao mundo.
Não havia espaço para a guitarra nova enquanto aquela ali persistisse, o esqueleto de madeira à espera de ser descoberto.
Não havia armário escuro e poeirento onde ela coubesse, onde não chegasse o medo de que ela tocasse sozinha a melodia desafinada do seu segredo.
E como eu gostaria de a despedaçar nas minhas mãos, farpa por farpa, desvendar tudo nuns minutos e depois atirá-la para sempre para os confins do esquecimento, fazer com ela um estrondo no quarto desarrumado para depois ouvir o silêncio.

Nenhum momento se repete. Nenhuma história se repete.

Apostar no cavalo errado

Na linha de partida recortam-se focinhos furiosos.
Um sinal e todos disparam a correr numa confusão de cascos e poeira.
Eu, confortavelmente sentada na assistência, coloco uma cruz à frente de um dos nomes. Tomada a decisão grito e esperneio, salto com euforia no meu lugar, rodopio no meio da multidão quando o focinho se destaca na frente.

Lá para meio do caminho dá-se o desastre: o animal tropeça e cai, dá umas reviravoltas acrobáticas e assim fica, sozinho no pó da pista, a debater-se contra a gravidade e a anatomia.
Eu suspiro e sento-me, dorida na alma como o bicho nas patas.
Infinitas pessoas passam por mim: palmadinha nas costas, palmadinha no ombro, palmadinha nas costas, palmadinha no ombro.
A última mão tem voz e diz o que todos pensaram: Apostaste no cavalo errado.

Triângulo com pernas


Sem dúvida uma personagem que tem tudo para se destacar no panorama internacional lolol

11

Hoje:
- É dia 11/11/11.
- Este blog atingiu as 10 000 visitas.
- Saiu a lista de vagas para a escolha de especialidade.

Abre a boca e fecha os olhos

Nós, os melancólicos com blogs introspectivos, também gostamos de coisinhas doces.
Assim, aqui fica a minha sugestão para hoje:


A escolha de Sofia

Qualquer semelhança entre o título deste post e o nome de um conhecido filme é pura coincidência. Eu não tenho o talento da Meryl Streep, o meu dilema é menos dramático e dura muito mais do que 150 minutos.

A verdade é que, lá para a primeira semana de Dezembro, mais coisa menos coisa, já com luzinhas de Natal nas ruas e embrulhada num casaco quentinho, eu vou escolher uma especialidade. Até lá a bigorna da (in)decisão paira sobre mim.


Na ordem de escolha estou equidistante do primeiro e do último. Sou aquele meio que ninguém sabe bem se é virtuoso ou se é o primeiro a ficar esmagado.

É penoso. Ridículo em alguns sentidos. Mas penso: pelo menos é uma escolha e não um dado adquirido em relação ao qual já só resta fazer gestão de danos.


ESTOU CANSADA DA GESTÃO DE DANOS. 

E a gestão de recompensas, hein? É que a seguir à tempestade nem sempre vem a bonança. Às vezes vem o granizo e um nevão.

Depois de 3 anos e uns meses a ripostar contra o Universo chego a uma brilhante e inútil conclusão: ou ele é estúpido ou não lê o meu blog.

Resoluções

Diz-se que as grandes resoluções para o futuro se fazem no último dia do ano:
Um punhado de passas e um punhado de desejos, tudo de uma assentada enquanto o fogo de artifício estala e os cristais colidem em felicidade conjunta.

O ano passado o fogo foi colorido e hipnotizante. Dispensei as passas. O champanhe era bom e eu estava de branco, rodeada do mundo inteiro. A meia-noite passou e eu molhei-me na água fria do oceano, o mundo inteiro ainda comigo em sinceras gargalhadas. Não me lembro de pedir absolutamente nada.
Mas devia ter pedido. Devia ter engolido as passas num trago só.
Se o tivesse feito talvez agora não olhasse para trás para ver a triste realidade: o fogo de artifício que eram faíscas tristes, o champanhe que era água da chuva, o banho de mar que era um balde de água gelada, o mundo inteiro que era uma pessoa só.

Este ano já tenho um pedido. Vou repeti-lo doze vezes, de doze formas diferentes, na minha cabeça, com ilustrações de memórias. Vou pedi-lo com fervor, como se não fosse um direito. Vou pedi-lo com humildade, como se não o merecesse. Vou pedi-lo com esperança, embora não tenha a certeza se resta alguma em mim.

Vou pedir a verdade.


My mind holds the key... My mind holds the key...

Postcards from Italy

Os momentos de angústia e contemplação por vezes conduzem-nos a felizes e inesperadas descobertas.
Enjoy! :')



Primeira coisa a fazer depois do vendaval: deixar assentar a poeira.

O Complexo de Cameron

Situação e/ou qualidade daqueles que estabelecem relacionamentos com a motivação genuína e convicta de reabilitar a outra pessoa, nomeadamente se esta mostrar condicionalismos comportamentais gerados por experiências traumatizantes anteriores, independentemente da previsibilidade de uma disfunção subjacente.

Estou a pensar fazer uma entrada na Wikipédia...

Noite cega

A meia-luz, o contorno fluorescente do balcão hipnotiza.
Os vultos adormecidos nas camas altas respiram a um ritmo sincopado, números e linhas a piscarem a seu lado, 
desumanizando o cenário da madrugada.

No silêncio, a mulher cega segura-me as mãos com força, os olhos vazios e a expressão assustada, beija-me os dedos, pede-me que ali fique mais um pouco na minha noite, que é o seu sempre, e eu fico. Há um inigualável conforto no toque humano, ainda mais nos dedos nodosos e deformados de quem não tem mais ninguém. Dois desesperos diferentes encontram-se no momento improvável das seis da manhã e anulam-se durante um minuto.

Quando as luzes se acendem e as mãos se separam devagar eu afasto-me, os meus olhos mais vazios do que os dela.
Imagino-te sentado. As almofadas do sofá amarrotadas, húmidas da transpiração de ali estares há horas, as paredes de tinta roída e desbotada, mais tristes agora que te morreu mais um pedaço de alma.
O cinzeiro cheio em posição precária ameaça espalhar uma nuvem de cinza pela divisão, não bastasse já a nuvem de fumo que sai dos teus lábios secos.
A tua mulher deambula pela casa. Ouves gavetas a fecharem-se, as solas rasas a raspar o soalho, a água da torneira a correr, o interruptor do quarto uma e outra vez. Não sabes se já foi noite a seguir ao dia de ontem porque os estores estão fechados. Engoles a medicação de um trago só, sem relógio, sem calendário. Atiravas-te da ponte se tivesses energia de chegar até lá. Mergulhavas da janela, mas o trinco está estragado e seria uma pena sujar de sangue a calçada lá em baixo.
Já foste arrogante mas agora não és nada. 
Tiveste uma filha mas agora tens apenas uma pessoa que entreabre a porta e te chama pai.
Já tentaste recriminar-te por teres transformado a vida dos outros num inferno mas compreendeste que não vale a pena.
Passaste a vida a decepar os dedos a ti apontados e agora tens uma colecção deles em frascos. De vez em quando livras-te deles num ataque de fúria, vidros partidos por todo o lado, mas umas horas depois eles lá estão todos outra vez, inalterados e meticulosamente dispostos por data e local de origem.
Nada no mundo pode limpar a mancha que tapaste com a almofada amarrotada do sofá.

E tudo o vento levou

Afinal a morte também pode ser assim.

É estar cá e não estar.
Outra vez o maldito espelho, a reflectir a última sombra daquilo que já não volta mais.
E aquela terrível verdade que é ser adulto: às vezes ninguém nos pode ajudar.
E aquela terrível verdade que é ter memória: tudo regressa quando estamos frágeis.
E aquela terrível verdade que vem de confiar em alguém: há pessoas muito más.

O amor não dá de comer

O amor não dá de comer,
Tantas vezes faz o contrário.
Entristece e tudo sabe a nada
Emudece e tudo é vazio.
Portas abertas e, ainda assim,
Sensação de casulo inerte.
Bate as asas num segundo
No seguinte, moribundo, se despede.
O amor consome até ao tutano,
Qualquer paixão emagrece.
E pouco resta no final do dia
Além do esquelético vulto:
Dança, dança, saco de ossos
Amas o amor, que absurdo!

As minhas perguntas retóricas

O que fazer quando tudo faz prever um futuro risonho mas o ruído de fundo se assemelha bastante a um esgar irónico?

O que fazer com uma pedra preciosa que de tanto mudar de mão está baça e lascada?

O que fazer com um sonho gasto? Reciclá-lo ou arranjar outro?

O que fazer com um coração que bate demasiado rápido? Fazer com que abrande ou tentar perceber a razão de tanta pressa?

O meu cão

É sabido por todos que me conhecem que é meu desejo desde a infância ter um cão.

Aquilo que é mais curioso é que o motivo pelo qual o quero tanto foi-se modificando ao longo dos anos, amadurecendo, tomando contornos cada vez mais complexos, mais adultos. Foi-se transformando à medida que eu conhecia melhor as pessoas e as relações entre elas. No fundo, foi-se transformando à medida que eu percebia que o amor de um cão é seguro, previsível, absoluto e recompensador ao contrário do amor de uma pessoa.

No início eu queria um cão para brincar, depois apercebi-me que também queria um cão para cuidar e mimar. A seguir percebi que desejava ardentemente aquela companhia que não cobra favores, nem critica, nem nega carinho. Mesmo agora, que entendo que o amor do cão não é totalmente desinteressado - envolve comida, abrigo e atenção - vejo que há poucas relações de tal simbiose, poucas situações em que podemos ter a certeza que vamos ser amados para sempre, protegidos para sempre.

Eu amo o meu cão embora não tenha nenhum. Amo o cão que imagino que vou ter: o brilho dos seus olhos quando chegar a casa do trabalho, as lambidelas nos meus dedos e a paciência inesgotável.

Eu já tenho um cão, só estou à espera que ele chegue.

Break-Up Songs


Eu quero ouvir uma musiquinha antes de me deitar.

YouTube, apetece-me deambular e encontrar qualquer coisa diferente.

Mas nós humanos somos tão previsíveis que o estúpido motor de busca já nos conhece as tragédias pessoais. E faz sugestões -  se gostas disto também deves gostar daquilo. Então, toma lá.

Dois ou três versos e já nos derrubam o espírito. Afinal somos tão vulneráveis, podiam vir com uma moca em punho e feriam menos. Basta ser genial para fazer uma música genial?
Não, é preciso ser genial e já ter tido um desgosto amoroso. Ou melhor, ser genial já ter tido um desgosto amoroso e estar com alguém que já teve um desgosto amoroso. Está composta a tríade das canções miseravelmente depressivas.

Estas pessoas deviam ser acusadas de abuso de poder, sabem bem que nos chicoteiam a alma e mesmo assim insistem em fazê-lo.


Feito o estrago ao menos posta-se a coisa para lhe dar menos importância, ali a seguir ao Hard Day's Night e à Cerelac e depois escreve-se um post de desabafo daqueles que não têm resposta.


Deita-se a cabeça na almofada e a música ecoa uma última vez, depois os olhos fecham-se e tudo se esbate.

Uma manhã

"Ele morreu aos 22 anos, numa emboscada na estrada."

Não chores, mulher, não chores mais... Era o nosso filho, sim. Estou só a contar aos doutores como foi.
Temos outros dois. Esses fui buscá-los à prisão, num dia de sorte. Na cela ao lado tinham estado sete homens e nenhum voltou a sair.
E fugimos. Já eu estava cego deste olho, doutora.
Chegámos a Portugal e os anos passaram.
Agora somos só os dois e esta bengala.
Já não há guerra, há só o vazio do que não veio connosco.

Boa sorte para o seu futuro, doutora. Agora vamos e nunca mais nos vai ver. Tenha filhos e queira Deus que não os perca. Siga os seus ideais e durma descansada à noite. Tudo o resto não depende de nós.

No tempo dos homens das cavernas

No tempo dos homens das cavernas (assim mesmo, de forma historicamente inexacta e cronologicamente vaga) não havia tempo para desgostos de amor.

Não havia tempo para ciumeiras, nem para joguinhos, nem para traições, nem para arrebatamentos, nem para serenatas, nem para reconquistas. O tempo que havia era para comer, para dormir, para acender fogueiras, para afastar predadores e para procriar.

No tempo dos homens das cavernas ninguém tinha vagar de se pôr chorar ou a sentir-se vazio e injustiçado porque o ente amado escolheu outro. Talvez nem houvesse entes amados. Talvez o amor seja puramente uma construção humana. Afinal, com o fim da luta dura e crua pela sobrevivência houve necessidade de arranjar outros dramas para ocupar o tempo.

Com o surgimento desta nova e maravilhosa faceta de apaixonado, o Homo Sapiens tornou-se também mais mesquinho, mais elaborado, mais calculista e mais dissimulado. Deixou de haver técnicas de caça ao mamute, mas outras lhes sucederam. Deixou de haver mortes com calhaus à traição por um bocado de carne crua mas continuou a haver golpes igualmente imorais.

Eu já vim aprender tarde essa triste verdade que não faz passar fome, nem frio, nem condena a sobrevivência da espécie mas mói como se a vida se transformasse num campo de batalha sem regras, sem honra: não há encantamento, nem paixão, nem amor que nos garanta nada, mais tarde ou mais cedo todos vamos ser pisados e humilhados.

Não deve haver no reino Animal ser menos confiável do que o Homem, capaz de apunhalar pelas costas e vir justificar-se com instintos e inevitabilidades da sua condição imperfeita.

Resta-nos manter a esperança de encontrar, neste tortuoso caminho, Homo Sapiens dignos, que percebam que só porque todos fazem não quer dizer que esteja certo.

A Ilha Verde

Debruçada na cerca de madeira, é assim que me recordo dos dias de calor nublado.

A vegetação luxuriante da ilha a reclamar de volta as construções humanas e nós, como seres obsoletos no meio daquele magnífico local, não ousando sequer tocar a pétala de uma flor ou o ramo de uma árvore com receio de quebrar a mística de tudo aquilo.

Apoio-me apenas na madeira rude, farpas pouco ameaçadoras baptizando os meus antebraços incautos, enquanto tentas enquadrar o que não tem enquadramento. Até nisso tens um encanto raro, o cabelo crespo dos banhos de enxofre e as pernas arranhadas, o intruso mais adorável de todos os intrusos.

A luz vai-se perdendo atrás de uma das mil colinas, pregando-nos partidas, escondendo as maravilhas da ilha até ao dia seguinte. Nós regressamos, guardando religiosamente na memória as fotografias mentais de tudo aquilo.

Ainda agora quando recordo, as hortênsias azuis e o absurdo verde, sinto o mesmo esboço de lágrima que senti na altura e a maravilhosa sensação de quem sabe que acabou de ver a coisa mais bela do mundo.

E até na mais profunda escuridão a ilha me seduz, como um ser colossal que adormece as crias, num silêncio que não é de dúvidas nem de espera. É apenas a noite a chamar-nos para si num ritual de milhões de anos.

Talvez tenhamos ficado na memória das árvores, uma molécula de nós persistindo na quietude e invulnerabilidade daqueles cenários, pois que não há alma que fique a mesma depois de tê-los visto.

Eu disse e ninguém ouviu

Não venha o tempo dizer-me que eu sou louca já eu conjecturei esse cenário, dada a quantidade de vezes que olho em volta e me encontro diferente do resto do mundo.

Conversamos e todos se riem das imoralidades do quotidiano, é banal por isso perdoa-se, todos fazem por isso não há problema, desde que não seja o próprio a ostentar a coroa de totó eis que faz sentido gargalhar aqui com a malta... Toda a gente sabe que estas coisas desagradáveis só acontecem aos pacóvios, porque quem se ri assim, de escárnio e puro gozo, tem uma inteligência que se eleva a tudo isto.


Já dizia o outro que um grande poder traz uma grande responsabilidade e isso nunca é mais verdade do que nos relacionamentos. O sentido de responsabilidade não é uma obrigação exclusiva de super-heróis e primeiros-ministros.

C'est la vie!!

Julgas que me conheces suficientemente bem para saberes quem eu deixei de ser?

Disse ele, as palavras tempestuosas, como se o quisesse dizer a muitas pessoas, de muitos tempos mas, por injustas circunstâncias, só pudesse dizê-lo a ela.
Cada um na sua vidinha, o tempo a passar e a arranhar-nos na passagem, de mansinho, nem sangra, nem dói, é só uma impressão fugaz.
E no final, eles chegam para ripostar porque o tempo não parou quando eles queriam, porque o tempo não recomeça do sítio onde a comodidade ou a rotina os fizeram ir embora e perder o rasto.
E quase parece que é culpa nossa, por continuar a viver e já ter rugas que eles nunca viram
, ter amigos cujas caras eles não reconhecem, ter problemas que nos marcaram sem que eles se tenham apercebido.
E parece que têm direito de dizer que somos piores agora, que mudámos muito e isso deve ser mau, que não há amizade como a deles, ou carinho como o deles, ou juízo de valor como o deles, incapazes que são de ver que também foram arranhados e que isso é mesmo assim.

Comunicado

Não me vou alongar sobre isto mas, sendo verdade, quero que aqui fique registado.
Há uns dias (poucos), fui profundamente injusta e arrogante ao criticar uma opção musical específica, só porque ela divergia da minha. Aqui fica o testemunho de que provei o "mesmo veneno" e aprendi: gostos não se discutem, conversam-se.

Hoje, ao ler um artigo no Público sobre os Coldplay, tive quase um vómito, de tão grotesca a linguagem e tão profundas as ofensas. É que, digo-vos, às tantas já não interessa de quem está aquele senhor a falar porque ninguém que faz música neste mundo merece ser tão brutalmente atacado e humilhado.

É certo que os fenómenos histéricos de popularidade também a mim me irritam. Mas digo-vos, irritam-me muito mais os pseudo-intelectuais, estes senhores que têm tempo de antena e usam-no para atacar pessoas que, simplesmente, porque assim quis a biologia e a circunstância, têm um gosto musical diferente do seu.
"Ah porque os Coldplay são muito certinhos e politicamente correctos e fazem música comercialóide disfarçada de poema amargurado e na verdade só pretendem confortar e não perturbar."

Meu senhor, todos entendemos onde está a querer chegar, a música dos Coldplay é comercial, vende muito, fica no ouvido, tem momentos de grande qualidade mas outros de maior banalismo, de repetição de sons e de sentimentos que são lugares-comuns. Mas, por favor, não me venha dizer a mim, que sou a mais profunda devota das músicas que perturbam, que agora todo o panorama musical tem de ser composto por artistas perturbados, suicidas, que se cortam com lâminas de barbear e hão-de morrer de overdose em banheiras. No panorama musical a diversidade é bonita e recomenda-se.

Pára, se faz favor, de comparar alhos com bugalhos?!
Apraz-me a mim dizer que o seu artigo é uma amálgama de juízos de valor muito pouco ajuizados e arrogância enfrascada em letras, disfarçado de jornalismo.

Se Coldplay para si é lixo, aguente, eu cá gosto desse cheirinho particular a lixeira.

É como Portugal: também dizem que é lixo, mas eu nasci cá e agradeço que não me chamem entulho.

Tentativa e erro

É burrice tropeçar sempre na mesma pedra. E, no entanto, aqui estou, a cara no chão coberta de lama, os lábios com sabor acre do sangue e as mãos doridas do impacto. O chão já tem a marca do meu corpo, socalco humano que materializa a minha profunda incapacidade de crescer.

Hoje nem sei de que cor estava pintada ou com que adereços enfeitada, a eterna pedra no caminho. Sei apenas que haverá sempre uma nova e legítima razão para ignorá-lo, o seu contorno espiculado e vingativo, e uma vez mais arriscar caminhar em frente.
E logo depois o inevitável baque surdo.
Agora deixo-me ficar no chão argiloso, o meu corpo húmido de qualquer coisa, que não sei se é orvalho da madrugada ou se é o meu orgulho choroso, assim como assim a curtir o solo irregular, a rebolar de um lado para o outro para prolongar o castigo.

"Vê se aprendes de uma vez. Porra! Vê se aprendes!"

O oculto encanto das coisas devolutas

Não há coisa devoluta que não fique bem num campo doirado ao final da tarde. 

Não há moinho meio caído, casa arruinada ou cerca partida que não chame a si o encanto misterioso das coisas que já não servem para nada.

Talvez queiramos descobrir o passado que ali se esconde, fazer parte de um tempo diferente do nosso, compor cenários mirabolantes e romantizados a que o crepúsculo dá uma tonalidade poética.

Talvez estejamos cansados da rotina dos prédios consecutivos, cinzentos e alinhados. Talvez estejamos cansados da previsibilidade da vida citadina, cínica, vaidosa, oca. É por isso que aquela parede de pedra semi-tombada parece um monumento à felicidade, no meio das espigas a perder de vista.

Eu gosto de coisas que já não servem para nada porque não têm a presunção de se acharem indispensáveis.

O Provérbio

"Há males que vêm por bem."

E quanto tempo devemos nós esperar até que esse bem apareça?

Como fazer florescer um Amor Perfeito - round 2

Orgulho

Ele entrou, como num transe, a cabeça baixa e as narinas abertas, cada passo ressoando no soalho do chão, como um toiro enraivecido, humilhado, espicaçado, vertendo sangue do dorso robusto. Os olhos vidrados, colocados num plano além do real, os punhos cerrados prontos para causar dor em qualquer coisa ou pessoa que ali surgisse sem ser esperada.

Pling, pling... as gotas de sangue invisível a pintalgarem o chão. 
Afinal ele é de carne e osso.

Todos aqueles meses, a pele brilhante e lisa tinha-me iludido, a expressão confiante, a intransigência, julguei que fosse de um só material todo aquele corpo, até ao mais ínfimo e delicado pormenor, uma qualquer liga inquebrável, invulnerável e indecifrável que superasse o meu alcance e a minha imaginação.

Mas ele ali estava, ferido no mais íntimo do seu ser, quebrado por dentro como eu nunca pensei que fosse possível. Quando lhe toquei as mãos estavam geladas e a força morreu-lhe toda no abraço apertado. Caiu de joelhos, um baque surdo que me doeu no peito, tão fundo, tão fundo, num local de mim cuja existência desconhecia até então.

Do quarto nascia um cheiro acre a morte, a fios de alma embaciados. Eu era apenas uma espectadora triste do mistério da vida, do ciclo vicioso que nos leva do pó ao pó. A respiração profunda abafava-me os pés, depois as pernas e depois o ventre.

Deixa-me abraçar-te, disse ele num murmúrio gutural. Estás tão quente.
Deixa-me despir-te e sentir esse calor na minha pele devastada. Estás tão viva, e eu preciso desse bocadinho de mim que aí tens dentro. Põe-mo no peito de mansinho, com cuidado, e eu prometo que to devolvo em menos de nada. 
Quero só lembrar-me que ainda estou aqui.

Como fazer florescer um Amor Perfeito?


Expor à luz solar.
Manter a temperaturas entre os 15 e os 25ºC.
Regar com frequência e abundantemente.

Ensaio de Sexta-Feira

Não venha o tempo dizer-me que falhei e já eu me antecipo, a análise rígida dos passos dados e dos não dados, a cabeça pensativa entre as mãos, o exame de consciência que vicia porque traz a disciplina e o controlo de danos.
Cada dedo apontado é uma carta que se desequilibra e cai. A perfeição das coisas manda que volte imediatamente ao seu lugar, imaculada, toda e qualquer causa da sua queda profundamente esmiuçada e corrigida.

Cansada, deixo cair a cabeça entre os joelhos e esqueço o castelo de cartas, meio tombado pelas circunstâncias dos últimos dias. Às vezes apetece soprar só para ver o que acontece quando tudo se desmorona. Apetece devastar com uma rajada os falsos problemas, as mesquinhices que a rotina nos força a julgar relevantes. 

Apetece ir viver para o meio da floresta, sem civilização alguma, construir castelos onde as cartas sejam estar vivo, estar quente, estar seguro só para poder regressar ao mundo real e respirar a profunda sensatez de distinguir aquilo que importa daquilo que é acessório.

Num mundo em que não houvesse espaço para textos destes, preocupações destas, teorias absurdas da conspiração, da perseguição, do azar e da sorte. Cheirasse eu uma flor e tudo nesse gesto me bastasse. Dedos apontados só para o sol que se põe, os bandos agrupados de aves ou a sombra mais refrescante para descansar.

As pessoas que não valem grande coisa

Existem neste mundo, a meu ver e concebendo que cada um de vocês já fez uma análise semelhante e terá a sua própria opinião, três grupos de pessoas:
1 - As pessoas que valem a pena
2 - As pessoas que não valem nada
3 - As pessoas que não valem grande coisa


Ora, a minha preocupação mais recente reside em identificar na multidão este último grupo de indivíduos que, por agir por vezes como se valesse a pena e outras vezes como se não valesse nada baralha esta metódica categorização mental.

Abaixo esta zona cinzenta do carácter que recorre a atributos tão "desejáveis" como o cinismo, o sarcasmo, a condescendência, o sentido de humor dúbio, a dualidade de critérios, a bipolaridade de humor e principalmente a profunda falta de respeito pela pessoa alheia. 


Vulgo, é o pessoal que faz o que lhe dá na telha e depois pede desculpa (para reincidir logo a seguir) e que dança consoante a música (mesmo, desde a clássica ao kuduro e diz gostar de todas muitíssimo). Como bónus têm frequentemente uma filosofia de vida que se baseia em actividades fúteis e em compensar as frustrações do dia-a-dia tornando o dia de outra pessoa um bocadinho pior (como aqueles monstros das histórias infantis que se alimentam das boas energias e da felicidade dos meninos).

Vulgo ainda mais, não mataram ninguém mas são uns parvalhões.

O dia das horas mortas

E quando o dia é feito de horas mortas?

Os últimos suspiros de alguém, as últimas recordações, os derradeiros arrependimentos, a reconciliação final com o Criador, quem quer que ele seja.
Quando a tua mão é a última a ser apertada, quando recebes o afecto do desespero, que te marcará para sempre. E ainda mais quando a despedida é um até já de longos anos, uma mão que te vai esperar algures no sítio para onde vão as almas, imutável, com as rugas do momento da morte, ou talvez diferente, com a delicadeza da juventude distante.

E eu fecho as páginas do processo, o resumo de uma vida em duas páginas, porque quis transferi-la para uma mortalha diferente, aquela que ela me pediu. Não sei sequer se lá chegou. Arrumei o meu cacifo e fui para casa. Já as despedidas tinham sido feitas e as últimas recomendações dadas. O meu até breve pouco sincero desabou na ausência de expectativas dos olhos dela, revirados já, a respiração profunda, o pedido que fez enquanto me afastava - "alguém que me ajude a deitar, quero fechar os olhos, quero que isto acabe, já vivi demais".

Ainda não decidi se quero saber o que se seguiu. Enquanto conduzia, no forno das duas da tarde, a minha revolta era anestesiada pela desidratação. Se calhar deixo-me ficar assim, na ignorância do momento da morte, podendo por isso idealizá-lo na minha mente.

Assinei o relatório e fechei o dossier azul, descrevi exaustivamente muitas coisas que fiz, outras que não fiz, que não quis fazer, que não sei porque se fizeram... Atiraram-me o fardo e eu fiz dele a missão. E agora a missão terminou.

Durmam bem. Façam o melhor possível todos os dias porque no final, quando só restarem os lençóis tristes do hospital e o ressonar pausado do doente do lado, é isso que vai povoar a vossa memória.

Música

Mais uma vez ali estava, a luz através da cortina semi-aberta, as antenas de TV a recortarem-se no céu nublado e eu sentada nos tacos quentes do chão.

Já quase não me sinto eu sem os phones nos ouvidos, dois mundos simultâneos, aquele em que me sento e aquele que me entra na cabeça, a confortar-me ou arrancar-me do conforto, a vibrar gentilmente ou a colapsar numa surdez entusiástica, a separar-me do que se passa ao meu redor ou a fundir-me com o mundo inteiro.

O sonho

Sonho (ô)
(latim somnium, -ii)
s. m.
1. Conjunto de ideias e de imagens que se apresentam ao espírito durante o sono.
2. Fig. Utopia; imaginação sem fundamento; fantasia; devaneio; ilusão; felicidade; que dura pouco; esperanças vãs; ideias quiméricas.
3. Culin. Bolo muito fofo, de farinha e ovos, frito e depois geralmente passado por calda de açúcar ou polvilhado com açúcar e canela.


Sonhei que estava sentada numa rua deserta e inclinada, os paralelos irregulares do chão impregnados da humidade da noite a cortarem as suas arestas nas minhas pernas desprotegidas.

Olhei de relance para mim. A saia um pouco acima do joelho, camadas sucessivas de folhos rendilhados, uns collants exemplares e uns sapatinhos de menina colegial do século passado que me apertavam os pés. A camisa de cetim com bolinhas, cintada e harmoniosa, cujas mangas se alargavam ligeiramente nas pontas dava-me um ar pitoresco, deslocado no tempo, qualquer que ele fosse.

Levantei-me a custo com as mãos apoiadas na parede rugosa e sujei as palmas de cinza de cigarro. Praguejei qualquer coisa e o eco atingiu-me de volta, a testemunhar o vazio geométrico da rua estreita.

Os óculos escorregavam-me da cara a cada passo, como se fossem grandes demais para mim. Dobrei a esquina à direita com a esperança de que algum elemento me revelasse onde estava e como regressar a casa. As minhas pernas estremeceram quando vi um vulto feminino no final dessa ruazinha e apressei-me a percorrê-la.

A rapariga viu-me chegar, uma expressão vazia que não consegui decifrar, e não pronunciou uma palavra. Então eu tomei a iniciativa: "Olá. Podes dizer-me onde estamos?". Ela sorriu, um esgar de condescendência e ironia, e respondeu "Estás onde não devias estar. Não é de mulheres que eu ando à procura!". Dei um passo atrás e os estúpidos óculos voltaram a descair para a ponta do nariz. Agarrei-os e de um só golpe atirei-os para o lado com toda a força. A rapariga não se mexeu enquanto as lentes se estilhaçavam na parede de pedra e as hastes deformadas caiam, inertes, no chão cheio de beatas e copos vazios.

Corri sem parar, cruzei essa rua, e outra, e outra, os pés latejantes de dor e um frio cortante nas pernas. Ao fim de um tempo infinito as pernas deixaram de obedecer e caí de joelhos nas pedras ásperas. Um fio de sangue correu rua abaixo, mas eu não senti dor. O olhos fecharam-se e eu deixei-me tombar gentilmente no chão, sem medo do que ia acontecer a seguir. No sonho dentro do sonho, estava a dançar no salão de um palácio, ao ritmo das ondas do mar. 

Foi então que alguém me pegou na mão gelada e disse qualquer coisa. Regressei à rua, agora cheia de gente e de sons, as minhas jeans e a camisola azul básica incólumes, uma leve sensação de náusea.
"Ouviste?" - disse ele com gentileza. "Estás a ficar cansada, vamos embora."
Concordei com um aceno e percorremos de mão dada a rua íngreme.

E depois acordei.
 

O Círculo

E a vida assim continua. E esta frase tantas vezes repetida quase perde o seu sentido de movimento e de continuidade. Estagna sobre si própria, como a monotonia dos dias, o repetitivo quotidiano de já não saber se hoje é Terça ou Quarta ou Quinta. 


E já nem é surpreendente aquele cansaço nas pernas, aquele olhar em túnel até casa, a sensação de alívio quando o colchão se afunda debaixo de nós e os olhos se fecham, por fim, no conforto primordial do quase-sono. 


Doem-me as costas de aqui estar, inclinada sobre o aquário da minha vida, as águas paradas e mornas, que não reflectem nada. Os peixinhos serpenteiam e desencontram-se no círculo vicioso das paredes, os olhos baços de não saberem o que é o mar.

 

O Euromilhões

Eu tento
Tu tentas
Ele tenta

... Mas no fundo somos só vozes, palavras descoordenadas dos actos, ambições plenas de sentido mas vazias de um chão.
... Somos sonhos.

Eu sonho
Tu sonhas
Ele sonha

... E se acredito com tanta força que sou especial talvez seja. E se saltar muito, muito alto talvez voe.

Coffee and TV

Disseram-me há pouco tempo que quando fazemos coisas boas receberemos, certamente, coisas boas em troca :)
Aqui fica a minha coisa boa de hoje: música e mais cores no design do blog.

Deus

O Deus que devemos temer ou aquele que nos perdoa?
O Deus a quem pagamos com sofrimento e sacrifício ou aquele a quem homenageamos com demonstrações de rectidão e integridade?
O Deus a quem atribuímos milagres ou aquele a quem atribuímos castigos divinos cada vez que as coisas correm mal?
O Deus que quer que escrevamos o seu nome com letra maiúscula ou aquele que nos fez à sua imagem?
O Deus que nos restringe na utilização do seu nome ou aquele que está sempre dentro de nós, em qualquer momento?
O Deus que nos criou ou aquele que nós criámos?

Porque razão poderia Deus achar que todos nós já nascemos em pecado, que as mulheres não podem ser sacerdotes e que um padre não pode amar Deus e uma família sua ao mesmo tempo, com igual dedicação?

O efeito AXE!

Estava eu sentada no meu sofá, a TV algures naquele range irresistível de canais que vai desde a TVCine 1 até à FoxCrime, quando passa aquele anúncio publicitário da AXE em que um jovem com aspecto de desleixo propositado e postura de "eu sou sacana mas tu gostas" é assediado por uma série de anjos sexy que entram em êxtase com o cheiro irresistível e destroem as auréolas douradas.

E depois deve ter sido a loucura porque está a cama cheia de penas e o dito indivíduo com ar de satisfação incrédula.

E pronto, assim se constrói um anúncio apelativo para a comunidade masculina, e vão os meninos/senhores ao supermercado comprar o dito AXE porque de todas as coisas retratadas no anúncio é a única que certamente conseguirão concretizar ;)

E agora...



The Big
  ?

Plim, não espreme!

E eis que me lembro, neste Sábado gélido, de me sentar com o portátil em cima das perninhas e escrever sobre algo que de tão fútil espanta por ser tema do que quer que seja e por ser tão incómodo espanta por não ser mais vezes tema de qualquer coisa.

Falo, como é óbvio, de borbulhas, em particular daquelas que se lembram de aparecer fora do seu tempo. Já a adolescência é o túmulo distante das maluquices que se fizeram e que não fizeram, já todas as outras marcas, mais ou menos purulentas, encontraram o seu lugarzinho especial no baú das recordações, e ainda persistem, sempre, uma ou duas destas irritantes coisinhas, a marcar os momentos de ansiedade e de indecisão.

Não vá a minha cara de ponto de interrogação passar despercebida há que fazer notar os momentos mais difíceis com uma borbulha.

Plim, no meio da cara, para aprenderes a não te enervares com coisas quotidianas. Plim, no meio do queixo, para perceberes que o stress só traz coisas feias


Acorde

As coisas não ditas podem ser tocadas.
O Universo abre-se quando os dedos tocam ou quando me tocam.
É a pele ou é a música?
Será que pensas o que eu penso? 
Quando eu era apenas um animal e não entendia palavras os meus olhos brilhavam com esses sons cheios de sentido.
Tu tocas e eu sigo. Tu tocas-me e eu fico. À espera que o mundo se feche sobre nós.

Se a música tem desencontros eu não os conheço.

Se tocar e tocar não são a mesma coisa então nada sei sobre nada.

Ouvi cantar...


Ouvi o "Ouvi dizer" e soube, no âmago de mim, que nunca antes na vida o tinha entendido. Mas hoje, posto o sol, passado o nevoeiro, percebi que é tudo sobre mim, escrito para mim, de mim, em mim. Seja sobre todos vocês também, talvez, mas para mim é como se me lessem na alma o passado e depois o cantassem com a raiva que eu tinha.
Todos pagamos um pouco... E o mundo acaba mesmo, porque quem lá estava morreu, quem olha para trás agora é outra pessoa qualquer.

O banco

Só para dizer que não entendo porque razão, quando se quer dar alta ao doente e se pretende preencher o motivo, a primeira opção do programa informático é "Entrou Cadáver". E dezenas de doentes depois, lá apareceu o mesmo número de vezes "Entrou Cadáver". Não, não entrou cadáver, nem há-de sair...


Sábado

"Na minha cabeça as coisas confundiam-se, o sonho e a realidade, o medo irracional e a desconfiança legítima, a insegurança natural e o receio quase patológico de voltar a segurar as minhas próprias cinzas nas mãos cansadas.
Os olhos doem de não fazer nada, de fixar coisas que na verdade não existem.
Antes o frio lá fora, a calçada irregular, as caras desconhecidas.
Antes o trabalho, o volante, o cansaço do dever cumprido.
Antes as noites em claro, as noites de poucas horas, as noites sem imagens.
Antes os dias de 12 horas, o trilho ininterrupto de pessoas, a necessidade de estar bem para que os outros se sintam bem."

Chuva

É preciso estar cansada, e eu estou.
É preciso ter vivido, engolido e cuspido muitas situações amargas.
É preciso ter percebido que há marés contra as quais não vale a pena remar.
É preciso ter compreendido que os problemas às vezes são como conduzir num lençol de água: o melhor é não fazer nada, manter a calma e rezar para que as coisas corram bem.
Eu estou no carro, chove, não tenho pressa... Se virem transporte melhor e quiserem sair agora, saiam. De qualquer forma já foi um milagre ter sido feliz.

Outra vez

Cansaço do primeiro dia. Do quase primeiro dia.
E amanhã o paradoxo de ter uma recorrente sensação desconhecida.
Medo de ser colhida no imenso trânsito da cidade, de mais uma vez transpirar a ansiedade e sentir o controlo escorregar-me das mãos.
Conhecem o desejo de que o dia não termine só para que o seguinte não comece?
Antes eu estaria deitada no tapete, derrotada. Agora sou só palavras, os anseios aqui dentro como uma locomotiva que aguarda pela hora da partida.
Disseste-me que só tens medo das coisas que já conheces, daquelas que magoam, daquelas que cicatrizam num perene processo de dor e recordação.
Eu entendo agora que tive medo de muitas coisas que não conhecia, sozinha na minha redoma evitando arriscar um passo fora da zona de conforto. Agora o desconforto está aqui, no chão gasto de ser pisado e eu sei que tenho de sair.
Não há mais indecisão, há a certeza, a de que tem de ser feito e a de que não vai ser fácil.