Crochet

Hoje é dia de escrever sobre a ausência de angústia.

Já era tempo da inspiração vir embrulhada numa embalagem cor-de-rosa com corações, assim mesmo exuberante, palpitante, quase a tocar os limites da histeria.

Empanturrei-me de chocolate e, numa espécie de transe de endorfinas, tudo o que aconteceu a seguir me acelerou para este texto de felicidade irritante. Queiram, por isso, perdoar-me caso não tenham encontrado até agora, neste texto, qualquer esboço de fio que vos permita levar esta meada a bom termo... Deixem-na cair, desenrolar-se anarquicamente no tapete felpudo, acidentar-se nas patas astutas do gato ou esgotar-se
 na parede do fundo depois da sua viagem de coisa redonda que rebola.

Eu não estou preocupada. Cada vez que carrego numa tecla e dou um pontapé no novelo de ideias que tinha no início esboça-se cá dentro um sorriso e por isso continuo, toc toc toc, a teclar insistentemente, já o novelo se desfiou todo e eu ainda não sei o que vai sair daqui, se é camisola, ou casaco, ou pullover...

E quer-me parecer que há um qualquer sentido místico nesta escrita inconsequente que me permite ir trauteando qualquer coisa ao pé coxinho até à cama e adormecer com a sensação de que o mundo me abençoou há uns 9 meses, mais coisa menos coisa, e nasce agora a criança sob a forma deste shot de esperança verde-alface.

Tenho escrito!

Godfather

É tarde, estou a ver o Padrinho II e a cair de sono.

O jovem Vito está prestes a fazer a tal proposta que ninguém pode recusar.

Eu estou a aprender que não se pode confiar em ninguém e a adaptar esse valoroso conselho à escala do meu quotidiano, e ao de todos os leitores que, presumo, também não fazem parte da Máfia, nem andam por aí aos tiros, em vendettas, ou a cobrar dinheiro para oferecer protecção.

Bang, bang, bang. E o desgraçado morre de uma forma teatral e sanguinária.
E minutos depois já está o Vito agarrado aos filhos, sentado ao lado da mulher que deve ser boa a fazer pasta e a parir e a ficar calada, tranquilo como se não tivesse acabado de "enfiar 3 balázios" num gordo na escada de um prédio.

No meu quotidiano ainda não ocorreu que me tentassem balear, embora esteja eu agora ciente que há palavras que dilaceram como balas, intrigas que nos minam como veneno, acções que nos denunciam como uma impressão digital na arma do crime.

A gota de água que tu querias ser

Não gostava ela de outra coisa.

Lamentar-se das suas próprias desventuras na imaginação alheia. Ouvia a música, via o filme, e a vida dos outros era sempre um drama auto-biográfico.

São quase quatro da madrugada e parece até um presente celestial esse sono que chega e aconchega as pálpebras. Ela ali está, meio reclinada no sofá de três lugares, tem os phones nos ouvidos mas penso que não ouve nada, tal é a forma como os olhos estão vidrados na parede.

Não interessa o que pensa hoje. Amanhã terá lamentado as palavras ditas. É por isso que me deixo ficar aqui, a pairar, agarrando-lhe as mãos com violência e a memória com correntes de ferro para que se cale. Para que se cale.

Por esta noite consegui. O sono empurra enfim o corpo cansado para a cama e nem uma palavra sai daqueles lábios precariamente suturados.

"É só uma gota num copo de água", diz a voz na cabeça dela, "e o copo és tu toda e aqui continuarás quando essa gota se evaporar, mesmo que a gota seja o teu coração e a tua alma agora, não te esqueças, meu anjo, que as gotas de água são todas iguais."

Foi isto que aconteceu

A lua antecipa-se à escuridão total enquanto a princesa penteia 100 vezes o cabelo à janela do castelo de betão e tijolo:

Não tenho jeito para me ir embora.
E por isso vou ficando, mesmo que as flores definhem e o vento gélido me anestesie os sentimentos. Encostada gentilmente à parede, a fumar um cigarro invisível, enredada no vício de aqui estar.

Sinto aquela náusea dos amores não correspondidos, dos amores antigos revisitados, dos amores não compreendidos.

Nem sequer há dragões que impeçam de aqui chegar, não há floresta densa nem mitos de uma morte lenta, mas ainda assim não tenho na minha curta vida visto príncipes, a cavalo, a pé ou de lambreta, ou aos trambolhões, ou empurrados ou sequer enganados à procura do caminho para o mundo sem-princesas.

Ouvi uma música e comecei uma incrível história da conspiração, parece portanto que o mundo é deserto de romantismo e o meu destino é tropeçar nas pegadas dos outros. É por isso que são estas belas horas da madrugada e eu aqui estou, o cabelo penteado, a fazer um curativo no pé direito, violento que foi o pontapé que dei na parede em que vivo encostada. 
"Não cuspas na mão que te alimenta", remói ela na sua perplexidade de cimento. 
E deve ter razão.

A Princesa e o Sol

O mundo mudou enquanto adormeci.

Foram dias e semanas, a respiração profunda, entrecortada por monossílabos indecifráveis e canções.

Cheguei coberta com a areia dos sonhos e agora os lençóis abraçam-me, num confortável mas mundano aconchego.

Os meus sonhos imutáveis, adormecidos no seu caixão de ouro, adornados com a hera dos séculos, pouso neles a minha mão bronzeada e quero a mão branca da princesa que já fui.

Não sei que lógica é esta que me agarra aos caminhos de poeira, fustigados pelo sol, sem uma sombra de árvore onde refrescar o cabelo em chamas, sem uma nascente de água onde acalmar o ardor dos lábios. Só porque o final é a promessa daquele canapé de vidro, que é o amor de me quereres sempre contigo e nunca haver cansaço nas nossas mãos dadas.

E se me dizes que não consigo, quebrarei as pétalas que deixaste cair, sem fúria, sem pena, apenas num suspiro de recordação por terem sido, um dia, tão belas.

Eu e uma madrugada qualquer

As músicas...
Deste-me as alegres mas eu ouço as outras.

Acho que vou sempre ouvir as outras...

E queria ser especial assim, lágrima ao canto do olho, coração perto da boca, a pensar no impossível como mais um dia no longo caminho.

Já sabes.

Histórias - Capítulo IV

Novembro parece estar quase no fim.
Mas o dia em que tudo devia ter terminado foi, afinal, o dia em que tudo começou.
Eu saí de casa e chovia copiosamente.
 O chapéu de chuva vermelho, vergastado pelo vento, não devia ter saído comigo nesse dia. Voou e morreu à frente dos meus olhos, as varetas incrivelmente torcidas e o escarlate rasgado na lama.
Aconcheguei-me ao casaco e continuei, em direcção ao abismo onde tinha caído dias antes. Desta vez tentei não tremer, apesar do frio cortante. Medi mentalmente os largos metros de queda e recortei na memória o contorno das rochas. Quis fazê-lo sem dor mas a verdade é que cada minuto daquele passeio me trouxe de volta o sabor a sangue na boca e o atrito doloroso dos grãos de areia na cara.
Agora és tu que te vais embora na viagem já planeada, a ausência que eu já conhecia e que ainda assim me dói no peito. Aquele risco branco que vejo no céu, agora que a chuva fez uma milagrosa trégua, serás talvez tu, de partida, deixando para trás um rasto que eu já via dentro de mim.
E lembro-me assim de ti, nestes gélidos minutos de Outono, segurando um botão de rosa na mão fechada para que ninguém veja, deixando cair de quando em vez uma pétala no caminho - "Eu não sou destas coisas, sabes?". E eu sorrio por dentro enquanto aperto a pequena raridade contra a minha cara.
"You can't always get what you want 
But if you try sometimes you just might find 
You get what you need"

Está frio, meu amor, não acordes

Está frio, meu amor,
Não acordes.
Não reconheças ninguém

No medo escuro da noite.
Por mais que te peçam,
Que a vontade te açoite,
Torna a dormir,

Aconchegado.
Não acordes.

Queria eu ter um abraço quente,
Envolver-te todo e sempre,

Mas sou tão pequena...
Queria eu dar passos de gigante,
Ser amor, amada, amante,
Mas sou tão pequena...
Queria eu dar-me toda e tudo
Mas sempre que mudo
Continuo pequena.

Ainda é noite, meu amor,
Não acordes.
Dá tempo, quando o sol raiar,
De te agasalhares bem,
De te encontrares contigo na esquina
No café, nas pessoas,
Nas coisas que amas, nas coisas boas.

E perguntares se vale a pena
Acordares de noite naquele abraço:
No meu, que sou pequena.

As minhas verdades fluorescentes

Ainda hoje tenho medo do escuro.

Já não preciso de luz de presença nem de deixar a porta entreaberta.

Já não creio que se esconda alguém debaixo da cama ou que os vultos da cadeira e da estante sejam monstros à espera de um momento para me roubarem os sonhos felizes.

Mas no escuro as coisas mudam de aparência, surgem de outra forma. Acho que algumas verdades são fluorescentes.

O sol da tarde e as minhas meias



Abençoados borbotos e traços coloridos que me desintoxicam a tarde.

Conversa, sorri, não te queixes

Enfim, acho que já não há paciência para lamentações, já não há tempo para arrependimentos, para desenhar cenários hipotéticos, rever opções menos felizes ou boicotar por pânico tudo o que foi feito.
A experiência já me tinha demonstrado que os nossos problemas cansam os outros. Sim, cansam. Bater na mesma tecla uma e outra vez, por mais que seja uma tecla legítima, faz doer o ouvido de quem está à volta. Por isso interditei essa tecla do meu piano. Fui imperativa, tal como quando pus o meu urso de peluche a segurar um papelucho que diz ESTUDA! ou quando colei um post-it na base do candeeiro de mesa a dizer LEMBRA-TE!.

No final tudo se resume ao que se passa cá dentro, no íntimo de cada um. É uma perda de tempo debater aquilo que não tem debate, lançar para o ar frases de dor esperando que à milésima vez algum ser divino grite de volta com a resposta. 
O ser divino não vai responder. Os seres terrenos podem até responder, mas provavelmente com desânimo, enfado ou impotência.

O silêncio é talvez o recurso de comunicação mais poderoso que existe.
Comecei e não terminarei até aprender a usá-lo com toda a mestria.

Noite


No fundo da página as pontas dos meus dedos desenhadas.
No céu o meu auto-retrato em letras, a ideia escrita em linhas tortas a captar o realismo dos dias vividos.
No centro a Lua.
Ao fundo o continente, como é visto da ilha, vultos ondulados, interrompidos nas margens da folha sem que se saiba, jamais, até onde vão.

Verão


Molhei o pé na espuma, o vestido atado num nó grosseiro acima da coxa, os últimos grãos de areia daquela semana perfeita a ficarem para trás à medida que me afastava da beirinha do mar.
Gosto das pegadas na areia húmida. Ensinaste-me que era mais fácil andar se colocasse as minhas por cima das de alguém que por ali tivesse passado antes. Eu assim fiz e cheguei mais longe, mais depressa.
Desenho mal e de memória por isso vão todos perdoar-me a falta de pormenores, a fraca noção de perspectiva e o facto de ter manipulado caprichosamente os elementos da paisagem e os protagonistas do momento.

E a sensação que me fica no final é que é difícil pisar o areal já pisado, viver de forma diferente o que já foi vivido, esperar que seja único aquilo que se repete. O tempo não volta para trás. É bom ser o primeiro. Eu ambiciono apenas ser a última.

Insónia!!!

Estou exausta.

E é por estar tão profundamente exausta que não consigo dormir. Fecho os olhos e começa aquela moinha estranha, uma dor que quase não é dor, um peso incómodo que me faz querer perder os sentidos, apagar, porque adormecer simplesmente parece impossível.
Sinto um formigueiro na ponta dos dedos, nos pés, não sei se é real ou se é metade do meu corpo a tentar adormecer, revoltando-se contra a vigília perene da outra metade. Nem me preocupo. Mesmo que quisesse preocupar-me não tinha força, nem ânimo.

Faz de conta que estou a escrever este post sem ter saído da cama, porque ainda me sinto presa a esse estado meio adormecido, com as ideias a orbitarem em volta de uma inespecífica dor opressiva.

Faz de conta que nem sequer andei a navegar por aí antes de abrir o blogue, faz de conta que não senti, pela enésima vez, que sou diferente das outras pessoas, tão diferente que por vezes nem sei se cabemos todos juntos na categoria de pessoas. Ou se calhar é só este friozinho irritante que começa a instalar-se nos meus braços despidos e nos meus pés descalços que me tolda o raciocínio.

De qualquer forma, gostava que este post pudesse ser infinito, que a noite me deixasse escrever tudo o que penso até que nada restasse para dizer, até que eu fosse apenas um lugar vazio de coisas e pudesse adormecer tranquilamente.

Gosto deste torpor da madrugada quase manhã, o estar aqui sozinha de uma forma que nenhuma outra hora permite, a deixar-me invadir por uma sensação egoísta e estranhamente confortável de que não existe mais ninguém no mundo, só eu neste interminável movimento de escrita, imune às opiniões dos outros, às nuances menos desejadas das noites de sábado, às frustrações repetitivas, quase entediantes mas ainda dolorosas, como se alguém insistisse em bater sempre na mesma tecla aguda e desafinada, uma vez e outra, e ainda outra, e ainda outra...

Ao mesmo tempo, no paradoxo desta minha condição tão desesperadamente humana, cresce a vontade que alguém leia e me compreenda. Seja como eu. Seja igual a mim. Para que as minhas palavras não sejam apenas inúteis aberrações do momento, injustiças orfãs num mundo em que, se calhar, quem está mal sou eu.

Filme Mudo

Sou aquilo que ali escrevi outro dia,
Mas perdi o papel e agora não sei
Em que dia nasci e em que dia deixei
De saber em que dia tinha nascido.

E tu que fazes? Eu estudo.
Sou dura de ouvido e intolerante.
Não sei ler lábios, nem quero.
E já não digo: deixa lá, eu espero.

Já disse que perdi o papel,
Ateei-lhe fogo quando não estava ninguém,
Deixei-o escapar pela janela aberta,
Ou qualquer desculpa que soe bem,
Nesse teu filtro de frases feitas.

E tenho só este poema de vão de escada
A mostrar-me que ainda estou aqui
Isso e a música do Zeca Afonso:
"Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será para ti,
Outra que eu souber será para ti"

Histórias - Capítulo III

Era uma história como as outras. Começava ao início da noite com o primeiro luar a envolver as personagens e o cenário. Podemos talvez supor que se ouvisse um último chilrear de pássaro e que os clarões dos candeeiros de rua se acendessem justamente no momento em que a imagem surge e os nossos olhos começam a procurar o fio à meada...

A figura esguia precipitava-se em grande velocidade e num pranto sonoro pela marginal quase deserta. Os poucos transeuntes olhavam perplexos para aquela agitação súbita e inesperada que lhes perturbava o passeio nocturno de sábado. Pobres e fúteis mentes que julgaram saber o que se passava, que ousaram comentar entre si o quão desnecessária era aquela confusa correria. Na verdade, nem eu sei o motivo das lágrimas ou da pressa. Se é que era pressa. Era talvez uma última tentativa de deixar para trás os eventos tristes, as pessoas incómodas, as recordações latejantes. Talvez tudo isso se libertasse com a velocidade crescente, percorresse os cabelos esvoaçantes e se lançasse das suas pontas para a atmosfera.

Eu, portanto, nada sabia sobre os motivos ou as consequências. Lia apenas a expressão daqueles escassos segundos em que o rosto dela foi visível da minha janela estreita. E tudo ali me dizia que a provação era profunda, sinistra, insuportável. Sonhei, nessa mesma noite, com os olhos negros de carvão, vidrados em qualquer coisa que não devia ser deste mundo. Estava demasiado longe para ver se chorava mas tenho a certeza que sim.

Imaginei que nessa noite se despedira do seu amante/amado/amor (qualquer coisa visceral que valesse aquela expressão de pura mágoa), depois de dias e noites a conjecturar se o faria, depois de horas intermináveis a convencer-se que o amor afinal não bastava. O ruído de fundo era, também ele, ensurdecedor, abafava a voz da consciência sem qualquer piedade. E tudo apontava para aquele triste final, em que ela correria até lhe faltar o fôlego, em direcção ao abismo dos sentimentos. Tentando que a impossibilidade de respirar, as dores profundas nas pernas e o violento impacto do ar no rosto apagassem a memória daquilo que acabara de fazer.

Quando o vulto dela se perdeu no fim do meu campo visual não saí pela porta, não tentei segui-la, não estiquei sequer o pescoço para tentar prolongar mais um pouco aquela cena melodramática. Afastei-me, crente na minha história inventada. Acendi o lume e coloquei a água a ferver. Bebi o chá quente em goladas longas. Tirei a roupa que me pesava nos ombros e tomei um interminável banho morno. Quando voltei à sala o gato miou com lassidão e sentou-se no meu colo. Adormeci com a imagem difusa da sua cauda amarela e laranja a aninhar-se sobre a camisa de dormir semi-transparente. No meu sonho era eu quem corria, quem sofria, quem desejava que a marginal não tivesse fim e que a corrida pudesse perdurar para sempre. Se ela chorou eu também chorei, se os pés lhe doíam a cada passo também eu sentia aquele sofrimento ritmado a cada impacto no solo.

Quando alguém bateu à porta, despertei com um salto. O gato miou e estrebuchou, assustado com a minha brusquidão incomum. Vesti o robe. Durante um milésimo de segundo voltei a convencer-me que de facto alguém batera à porta e que devia dirigir-me ao fundo da divisão para abri-la.

Era ele. Estava na hora.

Obrigado!

A vida corre... A minha imaginação acaba por se esgotar com palavras simples, com frases curtas, com ideias quotidianas e provavelmente pouco interessantes para explorar aqui no blog.

Passei por aqui só para dizer que estou contente. Com todas as limitações da minha condição de eremita, com os pequeninos dilemas que isso me coloca diariamente mas também com as profundas e surpreendentes alegrias!

Sou uma privilegiada e espero conseguir aproveitá-lo da forma mais construtiva.

...

Sinto os olhos tão cansados... Não sei se são as horas intermináveis a fixar as pequenas letrinhas ou se é o meu pensamento que não pára... Filmes reais e hipotéticos a passar diante de mim.

E isto é só o princípio...

Histórias - Capítulo II

A noite estava clara das dezenas de candeeiros acesos, as minhas mãos apoiadas no corrimão gélido, a pintura do metal a descascar grosseiramente sob os meus dedos. Ainda assim fiquei ali, imóvel, fixando o desenho geométrico que as pedras da calçada formavam no chão do largo.

De todo o lado a orquestra tocava, músicos invisíveis da minha mente, e eu acreditava com todo o meu ser que podia voar dali para fora, balançar-me entre as varandas de Arte Nova e dançar a uns metros do chão sem que ninguém se apercebesse.

O céu estava negro, as nuvens eram vultos grotescos guardando dos olhos incautos o brilho das poucas estrelas visíveis. A determinada altura os metais da orquestra soaram com mais intensidade e eu elevei-me um pouco mais no ar, profundamente seduzida pela melodia...

Dreams of the summer night
Tell her of all the keeps
Watch when it's slumber bright
She sleeps my lady sleeps
She sleeps my lady sleeps


Meia dúzia de gaivotas invadiram o quadrado de céu anil e os meus olhos cravaram-se no seu voo perfeito imaginando que também elas ouviam a música, as penas ondulando como o meu cabelo.

Numa das janelas havia uma grande tela branca projectando a preto e branco o meu sonho daquela noite de Verão. Os holofotes fixaram-me e eu rodopiei numa possessão estranha e incontrolável. Via-me naquele estranho filme: as gaivotas, a orquestra, o corrimão, o vento frio, a luz, uma terrível cefaleia................... she sleeps my lady she sleeps...

She sleeps...

She sleeps...

Histórias - Capítulo I




Um dia sentou-se Deus à beira do lago e juntou entre as mãos um punhado de argila húmida. Pensou uns minutos e formou na mente a imagem do ser frágil que surgiria dos seus dedos de artesão.

Para dizer a verdade, não sei se este pensamento era inédito, muito menos sei se este punhado de barro era muito do diferente do anterior ou do que o seguiu. Sei apenas isto que aqui vos conto porque mo deixaram escrito numa das paredes da Alma, naquela oposta às duas janelinhas, para que o pudesse ler vezes sem conta, assim que o dia clareasse.

Quis então Deus que a figura de barro tivesse em si um pequeno quarto a que chamou Alma, por onde entrassem e ficassem todas as coisas vistas, sentidas, percebidas e assimiladas através das duas janelinhas. No quarto quis Deus que vivesse, enquanto o coração não se cansasse de bater, uma menina, cuja única função era recolher todas as informações que chegassem e trabalhá-las para que dessem um significado à vida da figurinha de barro, desde o primeiro choro ao último suspiro.
Para que tudo corresse bem, a menina devia trabalhar arduamente, sem descanso, empilhando folhas de informação com uma perfeição inabalável. Mesmo à noite, quando lá fora todas as figurinhas de barro dormiam, a menina sentava-se num dos cantos do pequeno quarto e planeava metodicamente o dia seguinte.
Às vezes o cansaço era tão avassalador que a menina tentava em vão fechar os olhos e não pensar em nada, mas não conseguia. Ainda assim, se se esforçasse muito, dos olhinhos tristes escorriam gotas de água morna que ela nunca soube o que significavam.

Uma ou duas vezes por semana, olhava através das janelinhas lá para fora e sorria ao ver que a sua figurinha de barro parecia ser feliz, caminhando ordeiramente ao lado das outras figurinhas de barro, tal como fora programada para fazer.

E é assim que me recordo dela. As mãozinhas espalmadas no vidro da janela, os olhos muito abertos, límpidos e ingénuos, para sempre condenada a viver num quartinho sem portas, por um Deus que nunca soube quem era.

Meu Amor!

Há 150 anos, mais dia menos dia, mais lua cheia menos lua cheia, mais época das colheitas menos época das colheitas, uma jovem sentava-se calmamente à janela de sua casa, um longo pano de linho fino estendido sobre os joelhos e a agulha dançando habilmente nas mãos.

Tantas outras jovens fariam ao mesmo tempo aquela mesma tarefa, cumprindo o seu destino, consumando com os dedos primaveris e ingénuos o desígnio já cumprido por gerações e gerações de mulheres antes de si. Mas nenhuma imaginava, como ela, naquela tarde, motivo mais profundamente sincero para bordar na superfície branca e suave do linho corações de vermelho palpitante.

Hoje toco esse mesmo tecido e projecto-me numa espiral de tempo, segurando o peso das expectativas, da ansiedade, dos projectos e dos receios da jovem noiva. O coração jovem da minha trisavó palpita-me entre os dedos e dá-me a sensação única de ser dona de um pequeno e maravilhoso tesouro.

A um canto do lençol as iniciais M.A. bordadas no mesmo ponto delicado. Maria Ana.

No meu imaginário projectam-se outras palavras, sentidas talvez por ela quando escolhia cuidadosamente a forma das letras e a cor da linha. Meu Amor.

Tango Azul




O meu manto de asas falsas:
Morto, em caixão de veludo.
O meu fino vestido de alças
Retalhado pelas traças.
A tua voz ecoando de tudo:
"Porque é que danças?"

Hihihi




Ando contentinha, ando, ando :p e cansadinhaaaa! Já nem me ocorre nada depré para escrever... devo estar doente lol

(photo by JDF, no Paraíso)

Intenções

...

O dia estava mais ou menos a meio, o sol entrava através do vidro das portadas e iluminava tudo com a simplicidade de quem faz a mesma coisa dia após dia, desde sempre e para sempre.

De tal forma eram os raios de sol indolentes que nem um deles se preocupou com ela, deitada no chão de madeira clara, meio embrulhada num lençol branco, olhos abertos a fixar o vazio, mão direita entreaberta deixando antever uma folha de papel rascunhada a esferográfica.

Lá fora a praia estava deserta de gente. As gaivotas tinham invadido o areal e deixavam um rasto de pegadas cómicas na distância em que as ondas beijavam a areia. Uma delas chegou mesmo a voar de forma determinada até ao terraço amplo que as portadas separavam da sala e fixou por breves momentos o olhar no vulto imóvel. Nada de atractivo naquela cena para quem apenas anseia pela próxima refeição.

E assim ela ficou novamente só, talvez adormecida, não fossem os olhos firmemente fixos no tecto branco. O busto bronzeado aparecia debaixo do lençol imaculado, as ondas do cabelo assemelhavam-se àquelas que tantas vezes tinha visto através da janela daquela mesma casa, alguns desses cabelos colados à cara pelas lágrimas que tinha chorado antes que tudo, por fim, se acabasse.

A carta que lera minutos antes do trágico desfecho enumerava as diversas e encorajadoras intenções de alguém, intercaladas de pedidos de desculpas...

Mas, como o povo diz, "de boas intenções está o Inferno cheio"... e de boas intenções está agora, por isso mesmo, aquele coração vazio.

Ainda aqui está...

Hoje tive um sonho. Um pesadelo. Tantas vezes repetido que quase nem preciso adormecer para sentir o calafrio, a angústia, a profunda e antiga solidão.

Tantas coisas mudam, mas cá dentro outras tantas ficam. Submersas, à espera que a consciência as deixe escapar num momento de maior fraqueza. Um medo que se confirma, que se confirmou, que se estabeleceu perene no meu imaginário, de tal forma que sempre que fecho os olhos a possibilidade de o reviver fica a pairar, como um fantasma, sobre a minha cabeça. Eu ouvi tantas coisas, tantas coisas... E eram todas mentiras.

Só essa verdade ficou, colada ao interior das minhas pálpebras, para sempre.

O plano inclinado

Dormem ambos. As respirações pesadas ecoam na sala silenciosa.
Eu tento concentrar-me no som soberano dos meus pensamentos mas não é fácil.

O duplo efeito, o duplo efeito, o duplo efeito... (ronco)... quando aquilo que queremos é minorar o sofrimento mas para tal abraçamos o risco de que aquela vida termine ali, no acto da sedação.

...(sol lá fora, cansaço acumulado)...

O plano inclinado, o plano inclinado, o plano inclinado... (genérico do CSI em fundo)... quando uma decisão pode conduzir a outra e a outra e a outra, até que quando damos por isso escorregámos pelo plano abaixo e aqui estamos, irremediavelmente sentados no chão frio.
O meu plano inclinado é outro agora... (novo ronco)... quando me permiti passar da mesa de estudo ao cadeirão da sala e agora tenho uma vontade imensa de me estender na cama... seriam só uns minutos... mas depois seriam umas horas... mas depois seria uma tarde inteira!

...(respiração profunda)...

Tenho um livro para ler. Expectativas a cumprir. Alguém pare o tempo, por favor.

O que podia ter sido

Às vezes não entendo o que ela procura.

Naquela noite despediu-se de todos mesmo sabendo que a madrugada a encontraria ainda desperta. Agarrou o tecido grosseiro com uma força que nunca pensou ter e concentrou-se em colocar toda a raiva na ponta dos dedos, nos ásperos fios de lã grossa, até que as articulações gritassem de dor. Não importava. Desde que a dor física fosse superior às dúvidas que a assolavam, ao sabor amargo da frustração, à necessidade dolorosa de se manter firme e sorridente frente a todos ainda que por dentro uma chama recente a consumisse sem remorsos.

Não verteu uma lágrima. O impacto das coisas nunca ditas era muito mais profundo e visceral do que isso. Se alguém estivesse acordado àquela hora tardia tê-la-ia visto caminhar até à porta de correr e sair para o frio gélido com a convicção inabalável das almas que sofrem. Teria sem dúvida admirado o seu vulto curvilíneo e frágil recortado nas luzes amarelas e tristes dos candeeiros da rua. Ter-se-ia questionado sobre quem seria aquela bela e decadente criatura e o que faria envergando uma camisa de dormir de Verão na madrugada fria. Ter-se-iam escrito lindos poemas sobre a forma como se movia descalça na calçada irregular. Se alguém algum dia a tivesse visto.

Sentia as mãos latejantes de dor mas segurava ainda, de forma relutante, o pedaço de tecido rude e escuro. Por fim, cedendo à incómoda descida de temperatura, embrulhou-se nele como num velho amigo e deixou que o calor lhe aliviasse a penosa caminhada.

Chegada à zona mais sombria da rua olhou em volta, sem medo daquilo que ia encontrar. O vulto acenou-lhe com um gesto rápido mas determinado, uma das mãos apoiada na ombreira da porta e a outra equilibrando entre os dedos um cigarro quase extinto. Ela aproximou-se e abraçou-o, afastando-se depois um pouco para respirar o ar frio da noite. O fumo do tabaco ainda a incomodava.

Ela sabia bem que ele ia passar a noite naquele degrau gelado e por isso estendeu o pedaço de tecido no chão com a doçura com que estenderia um lençol de seda. Os ombros nus tremeram por estarem de novo descobertos e vulneráveis. Deitou-se, sempre em silêncio, e esperou pacientemente que ele terminasse o cigarro.

Alguns minutos depois ele sentou-se no degrau, aconchegando entre as suas mãos calejadas os pés descalços dela e perguntou numa voz que quase se sumiu com o vento

"Hoje vieste dormir com o mendigo?"

"Não" - respondeu ela num sorriso triste - "Hoje vim dormir contigo."

Quem tem medo do Lobo Mau?

O Lobo Mau toma várias formas, tem várias máscaras, movimenta-se entre nós como um nativo e é até capaz de algumas atitudes de simpatia para melhor se integrar nas actividades do quotidiano.

Deixou-se já daquele hábito de soprar as casas de leitõezinhos ou de tentar ingerir avós indefesas e optou agora pelo terrorismo psicológico, pela competição desleal e pelas intrigas de bastidores.

Eu pessoalmente não tenho medo do Lobo Mau mas a sua existência preocupa-me, repugna-me e revolta-me. E perturbam-me também aqueles que lhe fazem cinicamente festinhas no pêlo só para não levarem uma dentada.

E, assim, todos os dias ele lá está, encostado a uma parede, sentado a uma secretária, no bloco operatório, na consulta, na enfermaria, no café da esquina, no supermercado, rosnando para o lado sempre que lhe cheira a Capuchinho Vermelho.

Já começa a ser altura de arranjar uma caçadeira...

Até amanhã

Luz vermelha do semáforo,
Beijo rápido antes da paragem final,
Curto pico de adrenalina
E o motor volta a romper o silêncio.

Gosto da estrada assim vazia,
Do contraste com este espaço cheio.
Do perfume familiar que envolve tudo
E que em escassos minutos
Dorme apenas nas mãos nostálgicas.

Gosto dos meus dedos nos teus,
Mesmo quando não se tocam
E apenas se imaginam com o fervor
Das coisas que quase se pertencem.

O vestido ondula quando saio, enfim
Sem testemunhas do beijo que já foi.
Repito os passos de outras noites
E adormeço os sentidos. Até amanhã.

Não brinquem comigo!

"Não brinquem comigo!..."

Juro que esta é uma das frases que mais frequentemente me assoma os lábios já depois de ter bombardeado persistentemente os meus pensamentos. Um dia hei-de conseguir entender porque razão a maior parte das pessoas encara com tranquilidade e com auto-condescendência os seus próprios erros.

Errar é humano.
Achar que a partir do momento em que os erros dos outros passam a ser os nossos deixam de ser tão graves e passam a ser admissíveis é egoísmo e fraqueza de espírito.

Aprender com os erros não significa deixar de os considerar erros.

Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos

"Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

Foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

E repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã."


Maria do Rosário Pedreira

Aparição

"Calou-se enfim. Uma beleza demoníaca, como de uma criança assassina, fulgurava-lhe nos olhos líquidos, na face branca, na boca ávida e sangrenta. E um apelo de uma união trágica e blasfema subiu-me pelo corpo como um grito estriado, uma raiva distorcida com longos olhos chorando... Então, quase serenamente, tomei Sofia nos braços e ambos nos sentimos perdidos de aflição como no último amor de dois condenados à morte."

Aparição, Vergílio Ferreira

Sentir

(...)
"people you've been before that you don't want around anymore
that push and shove and won't bend to your will
I'll keep them still"
(...)


Sentir é a melhor coisa do mundo...

Sexta-feira

Chego... A roupa pesa e o calor também... Sonho com um duche morno, longo, sem preocupações. Sextas-feiras como esta são traiçoeiras. Iludem-nos com promessas luminosas de um fim-de-semana sem restrições, sem deveres, sem tristezas.

Percorro o curto caminho até à minha mesa de trabalho, abro a pasta das músicas e deixo-me envolver pelo mel das palavras cantadas, que me sabem a beijos... A súbita e provocadora alegria é intercalada por um momento agridoce: recordo a mensagem, a ideia que a precedeu, aquela conhecida insegurança onde eu teimo em tropeçar. Esforço-me por mudar de direcção, agarrar novamente a melodia e a sensação de areia fina a percorrer o meu corpo.

Liberto-me das amarras da indumentária desse dia, abro o gavetão com displicência e escolho qualquer coisa confortável. Gosto da sensação do algodão fresco na pele! Rodopio com as borboletas e o cor-de-rosa da t-shirt larga que acabei de vestir e deixo-me desfalecer na colcha suave.

Qualquer coisa que me apeteceu escrever hoje

Começo por dizer que estou exausta, mas aquele cansaço bom de quem deu tudo o que tinha e um bocadinho do que não tinha e conseguiu cumprir um objectivo.

Esta introdução serve apenas como desculpa antecipada caso as conjecturas, confissões ou palpites seguidamente apresentados forem totalmente desprovidos de sentido.

Estando as desculpas pedidas posso agora dedicar-me a enumerar uma série de factos fúteis e sem qualquer esboço de ligação entre eles que decidi transformar num post simplesmente porque ainda estou incapaz de pegar na apresentação da tese mas simultaneamente não quero ceder já ao cobrador insistente que não pára de me informar que tenho uma dívida de sono avultada.

Hoje os aparelhos electrónicos estão contra mim. Internem-me compulsivamente se quiserem, mas há uma conspiração qualquer destas maquinetas todas contra a minha pessoa: o telemóvel por alguma razão deixou de aceder à Internet, o leitor de mp3 não lê as músicas que eu queria desesperadamente passar a partir do portátil e o computador começou a bombardear-me com janelinhas que eu não consigo fechar. Portanto, todos deixaram de fazer aquilo que fazem habitualmente e que é da sua responsabilidade. Logo, aquilo que eu devia fazer em protesto era exactamente o mesmo, sentar-me ali no sofá, imbuir-me de todo o tédio e preguiça que fosse capaz, ignorar que tenho milhares de tarefas a cumprir e ficar assim, como os lírios do campo, parada à espera de sentir a rotação do Planeta.

Mas não, aqui estou, num esforço hercúleo, a entupir com mais um post um blogue já saturado de posts, que por sua vez se inclui num sítio já saturado de blogues, que por sua vez corresponde a um dos biliões de sítios onde alminhas como a minha navegam todos os dias... e onde alminhas como as vossas lêem textos caóticos como este.

Formigas

Sentei-me na relva, respirei fundo e tentei encontrar um sentido nas coisas que se tinham passado...

Até agora ainda só vi formigas...

Inquietação

Tudo tem um fim.

Só mais um dia em que o Sol nasce, contempla a Terra e percorre inexoravelmente o seu caminho até à noite, indiferente a tudo o que à sua luz se desenrola. Mas hoje, quando me deitar, muito depois do Sol ter desaparecido no horizonte, o mundo será, aos meus olhos, um sítio muito diferente.

Encarar a perda, ainda que em antecipação, é entender o desaparecimento daquela pessoa em particular mas também entender que nada dura para sempre, que algo que era complexo, que era alma, que era gente, que era um intrincado labirinto de recordações, conhecimentos, experiências, ideias, valores e sentimentos pode desaparecer num milésimo de segundo, sem deixar qualquer sombra de rasto. Todo um universo de inestimáveis pedaços de vida, assim perdidos, como se nada ali tivesse habitado além de um imenso vácuo num corpo imóvel.

E enquanto a hora não chega (a hora já anunciada pelas pequenas missivas orgânicas que ninguém soube interpretar) resta-me ver o esforço cambaleante de quem antes corria, ouvir os sussuros hesitantes de quem antes cantava, sentir e partilhar a profunda mas tranquila tristeza de quem antes sorria.

Queira Deus que estas minhas palavras e esta minha dor silenciosa tenham um propósito, queira Deus que pelo menos em mim subsista um pequeno pedaço de uma vida que se vai esgotando.

I wish...

Eu bem queria chegar a casa, sentar-me tranquilamente, abrir o computador e escrever aqui qualquer coisa maravilhosa, arrebatadora, ao mesmo tempo subtil e engraçada, mas também profunda e inspiradora, enfim qualquer coisa tão perfeita que nos pudesse ludibriar a todos, que nos fizesse fugir por uns momentos desta vida tão profundamente incompleta, injusta e cruel.

Digo: nunca como hoje me senti tão velha, tão ultrapassada pelas coisas, tão presa numa rede de artimanhas da qual não me consigo soltar por mais que tente.

E surge-me na mente aquela frase, inúmeras vezes repetida: com cada desgosto profundo uma parte de nós morre, para jamais voltar... Lembro-me de um post que escrevi há muitos, muitos meses, com profunda dor e em que me imaginava a mim própria no espelho, a Sofia de antigamente, a Sofia que acreditava, para sempre impedida de voltar a habitar o mundo real.

Mas hoje que a angústia adormece de mansinho no meu peito percebo que essa Sofia ainda está aqui, agonizando lentamente, à espera de um grito de salvação, um grito que nunca virá...

Como eu queria que as coisas corressem bem!... É um desejo tão forte que me arrebata. Talvez eu ainda possa ser feliz...

Pequenas coisas

Hoje são as pequenas coisas que despertam a minha atenção...

A flor nova que desabrochou na jarra da entrada,
O minúsculo caracol de cabelo do meu irmão que descansa na almofada do sofá
A luz ténue e minimalista do candeeiro de pé que banha de dourado o chão
O ruído longínquo da televisão da cozinha enquanto escrevo estas linhas

A melodia das palavras que acabo por não pronunciar mas que embalam docemente o meu coração por estes dias...

Dar as mãos...

Vou cortar o cabelo!

Hoje acordei de manhã (sendo aqui a palavra "acordei" um abuso de linguagem porque a verdade é que não preguei olho a noite inteira por motivo que provavelmente permanecerá para sempre um mistério) e decidi, perante a imagem perplexa e despenteada que me olhava no espelho, que tinha de cortar o cabelo. Marquei mentalmente: Urgente!

E assim começou a estranha manhã, depois de uma estranha noite e que, espero bem, não culmine numa estranha tarde (é porque uma tarde estranha nas circunstâncias actuais pode significar sair do cabeleireiro careca ou com uma crista verde).

Enquanto esperava horas para perceber em que consistia o meu estágio na Psiquiatria e quem era o meu tutor fui interagindo com várias personagens interessantes como a secretária de unidade que usa socas barulhentas, o segurança da enfermaria que deita a língua de fora aos doentes internados através do vidro da porta e até (percebi eu depois do susto) senhores agentes da polícia que entram à paisana na sala de espera com revólveres a aparecer nas calças de ganga.

Quando finalmente fui orientada (e bem!) pelo Serviço apercebi-me que o hospital está em convulsão interna, com o pessoal médico a fugir a sete pés para o privado. Assim, depois de uma conversa de cerca de 20 min o meu tutor acabou dizendo "a saúde em Portugal está mesmo mal, espero não ter contribuído para destruir os teus sonhos de jovem médica".

E agora, depois do incentivo, lá vou eu aventurar-me no cabeleireiro. Serei uma mulher nova daqui a meia-hora, prontíssima para alternar Harrison com o capítulo do DSM de esquizofrenia.

Redes mentais

Quem me conhece sabe que a seguir a uma crise criativa vem um BOOM de posts... e como é meu hábito não querer desiludir ninguém aqui vai mais um.

Cada vez acredito mais que não acredito nas redes sociais. E contra mim falo porque devo estar inscrita em quase todas as que existem. Ainda agora liguei o msn e lá estavam as opções: memorizar-me, esquecer-me, abrir automaticamente, aparecer como offline! Uau, qualquer dia começamos a acreditar que a vida é assim também. Agora memoriza-me mas amanhã esquece-me, hoje estou online, amanhã dou uma espreitadela mas offline para não saberes que estou aqui, estás a falar comigo mas eu até me pus ausente por isso não preciso de responder. E não pensem que quem concebe estas redes tenta subrepticiamente transformar o rumo da sociedade actual porque basta pensarmos na palavra Facebook para percebermos para que serve e em que entramos. Estamos a mostrar a nossa bonita carinha para ver se alguém nos liga alguma, e colocamos lá que somos solteiros, ou numa relação, ou numa relação aberta ou à procura de amigos e achamos que o mundo se cataloga assim, alegremente e sem remorsos.

E depois dou por mim a conhecer pessoas e a pensar: "Será que este é dos que memoriza e depois esquece ou será que é dos que está aqui mas diz que está ausente?" Será que os outros pensam o mesmo quando me conhecem a mim?

É assustador!

E para aumentar a paranóia de tudo isto vou citar um grupo do Facebook para demonstrar os fenómenos curiosos (e são mesmo do ponto de vista sociológico muito interessantes) que ocorrem nestas redes. Há então um grupo que se chama qualquer coisa deste género: "Na rua não me falas mas queres ser meu amigo no Facebook". Brilhante! Porque sem olhar cara a cara é fácil dizer e fazer tudo, e porque o ego aumenta quando de 100 "amigos" passamos a 150 e depois a 200. Epá, sou muito famoso!!

E depois é chegar a casa e correr para o computador para ver se responderam ao que se postou, aquela foto ou aquela frase. "Boa, tenho aceitação social" ou "Bolas, ninguém me liga nenhuma".
E às tantas, quando os amigos reais metem o pé na argola, já não há tolerância nem meias medidas, afinal tenho 300 "amigos" no Facebook por isso sou feliz mesmo sem aquele. E as relações cada vez mais são frágeis, porque tenho aqui 20 pedidos de amizade de meninas e meninos tão giros, que pena desperdiçar.

E tudo isto se torna ainda mais perturbador quando acabamos por conhecer ou reencontrar pessoas decentes desta forma... Afinal onde está a verdade das coisas?

E para terminar, peço perdão à minha professora de Português que eu adoro e que colocava tantas esperanças em mim por ter começado cinco parágrafos deste post por "e". Parece que as redes sociais também assassinaram o meu português.


Talvez

Não se preocupem os visitantes do meu blog... Os que comentam e aqueles que eu sei que lêem mas não comentam... Eu voltei.

Voltei porque ciclicamente alguma coisa acontece que me relembra que nada sou sem as minhas palavras, sem os meus desabafos neste cantinho que partilho convosco. Em tantos momentos aqui confidenciei os mais obscuros e profundos sentimentos, coisas que passaram e que agora são apenas textos de meia dúzia de linhas perpetuados até que o blog morra.

E há uma espécie de sensação catártica em escrever aqui, qualquer coisa mística que não encontro em mais lado nenhum e em ninguém... E agora que penso nisso... Ainda bem. Porque as pessoas vão e vêm, tomam outros rumos, desiludem-nos ou nós a elas, mas as palavras podem durar para sempre se assim o desejarmos.

Se há coisa que me acompanha desde os primórdios de mim é o desejo de escrever, agarrar na caneta (daquela forma estranha, sim) e juntar duas ou três palavras, tantas vezes baptizadas com lágrimas porque tantas vezes essas palavras eram de angústia, de desespero, de frustração.

E já estamos todos cansados de saber que a tristeza inspira a estas andanças da escrita, o coração fica apertadinho e envia cá para fora coisas tão absolutamente íntimas que às vezes nem me apercebo de as ter pensado antes de as ter escrito. E quando escrevo não espero nada, sinceramente, além de um alívio transitório das coisinhas parvas que me atormentam.

Mas hoje, não sei bem porquê, não sei se é o tempo que está claramente a mudar, as nuvens que se adensam, a chuva que ameaça cair, mas há qualquer coisa de diferente... A minha alma continua estranhamente pesada.

Talvez um destes dias me ocupe a revisitar algumas coisas que aqui escrevi no passado, num daqueles dias em que o horóscopo diz a verdade sobre o meu signo masoquista. Talvez me deite na carpete de pêlo fofo, talvez feche as cortinas, talvez cante para mim própria uma música qualquer, talvez desarrume os meus peluches de infância do gavetão e finja que ainda sou pequenina. Talvez ligue a televisão bem alto só para não ouvir os meus próprios pensamentos, talvez saia de casa e caminhe sem rumo, talvez enterre a cabeça na almofada e finja que o dia não chegou a começar.

Porque sim...

"Fui para a cama com todos os sentimentos,

Fui souteneur de todas as emoções,

Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,

Troquei olhares com todos os motivos de agir,

Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,

Febre imensa das horas!

Angústia da forja das emoções!

Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,

A cadela a uivar de noite,

O tanque da quinta a passear à roda da minha insónia

O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,

A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,

Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,

Ó fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,

Orgia intelectual de sentir a vida!"







Álvaro de Campos

Eu?

Sei onde está a minha almofada fofa, o meu livro, os meus chinelos de casa, o meu querido puff vermelho. Sei o caminho para o hospital, sei onde estão os processos, e os doentes, e o material, e a máquina do café, e a biblioteca. Sei onde vivem os amigos, sei onde passam os dias, sei com que se ocupam. Sei tantas coisas...

E ainda assim não sei de mim...

Tarde

Lá vou eu, arrastando o puff vermelho pelo corredor até chegar à sala. Coloco-o metodicamente alinhado com o triângulo de luz que vem da porta da varanda. Lanço-me para cima daquela massa disforme e fofa como se não houvesse amanhã, com as fotocópias do Harry na mão, o marcador, a lapiseira e a borracha. Prometo a mim própria não adormecer.

A minha mente cheia de bebés, pedidos de análises, jogos de futebol, sessões de cinema, bençãos de fitas, casamentos, teses de mestrado e outras coisas do quotidiano dedica-se ao esforço hercúleo de viver apenas para aquelas pequenas letras, para aqueles grandes paradigmas da Medicina.

I'm back my friends

E de repente quem me dera que este blog fosse vermelho-vivo, azul, verde, laranja!!

Sinto-me a voltar a casa, aninhada no cantinho luminoso da minha alma, respirando o perfume doce da relva e do Sol!