Sem título

Não há grande encanto na solidão, isso posso eu assegurar. Mesmo quando já nos habituámos a ela, quando se torna uma companhia segura e previsível de todas as manhãs e todas as noites. Ainda assim, é frio o silêncio da madrugada, os pensamentos repetidos, a tentativa de escapar a um futuro que parece escrito a ferro e fogo.

Às vezes a salvação está bem perto, à distância de um passo, de uma pequena corrida, de um suspiro, de uma palavra, de uma acção, de uma hora ou um minuto, de uma mão aberta, de um sorriso, de uma oportunidade, de um momento de tolerância.

A rotina e o preconceito fecham-se sobre nós e envolvem-nos num casulo do qual não há saída, nem transformação, nem evolução. Há que adquirir as armas certas para a libertação, não adormecer, jamais deixar-se confundir com as paredes cinzentas e sufocantes do casulo. Talvez assim haja ainda esperança de um novo dia, de uma luz, de uma abertura para o exterior.

História de um Gato

Havia 
Num destes dias, 
Numa casa com vista para o mar
Um gato de pêlo cinzento
Olhos verdes e triste miar.
Três gerações de pessoas
Viu nascer e crescer,
Nunca se comprometeu
Nem se deu a conhecer.

Agora, velho, relembra:
Mil vezes disputada
A sua mui nobre atenção
Lágrimas quando estava doente
Sorrisos quando estava são
Fotos da sua altivez
Elogios à obstinação
Anos a ser bajulado
Décadas de adoração.

Agora, velho ancião, mia:
Mas as ondas não ouvem
Nem a porta que chia.
A janela aberta,
Traz calafrios gelados.
Ninguém que o afague,
Que o tire deste enfado.
Morre assim o gato,
Presunçoso ídolo derrubado.