A verdade e dois sopapos

Já não há paciência.
Reitero, já não há uma migalha de paciência.

Incomodam-me as pessoas com complexo de "personagem de filme". Vilões ou heróis, colocam-se em papéis por si rotulados, seguindo uma vida lírica e irreal.


Cada vez que falam ouvem-se atrás violinos, às vezes desafinados.

Por favor, onde estão as pessoas reais? Que vivem vidas reais, com os pés assentes no chão, sonhando nas alturas certas sem delírios de grandeza ou de perseguição ou de mártir, nem arrogantes nem falsamente modestas. Cientes daquilo que fazem bem e daquilo que fazem mal, procurando de forma realista reequilibrar a, já de si precária, balança das relações humanas.

Estou cansadíssima de violinos.
Toquem um tambor, ou ferrinhos, ou clarinete, ou tuba.

O violino é tão complexo e etéreo que ninguém consegue acompanhar o seu lirismo afectado durante muito tempo sem perder a sanidade.

Calem-se e olhem em volta.

Marina e Ulay

Marina Abramovic é uma artista performativa nascida em Belgrado em 1946. Tem uma extensa obra, explorando os limites do corpo e transportando a consciência humana até ao extremo.
Aos 30 anos, quando se mudou para Amsterdão, conheceu o artista alemão Ulay, com quem estabeleceu uma relação emocional e artística de simbiose, de fusão de corpos, mentes e egos artísticos que se prolongou durante anos.
Numa das performances conjuntas, Marina e Ulay uniam as bocas e expiravam o ar cada vez mais rico em dióxido de carbono um para o outro até ao estado de inconsciência. Esta representação procurava simbolizar a forma como algumas pessoas conseguem "sugar a vida" de dentro de outras, induzindo a sua destruição completa.
Quando ambos sentiram que a relação tinha chegado ao fim decidiram que a despedida deveria ser, também ela, simbólica e definitiva. Assim, na sequência de um sonho orientador de Marina, percorreram a Muralha da China - Ulay partiu do Deserto de Gobi e Marina do Mar Amarelo - e encontraram-se a meio do caminho para o último adeus.
 
Depois de décadas de absoluto afastamento, em 2010, numa exposição de homenagem à obra de Marina, realizada no fabuloso MoMA de Nova Iorque, Ulay aparece de surpresa numa das demonstrações performativas de Marina em que ela partilhava um minuto de silêncio com cada elemento do público.

Este é o vídeo desse momento. Enjoy.

Dissertações nocturnas

Depois de ver "O Impossível" e de constatar que o fim de semana terminou, ocupo estes últimos minutos antes do sono com breves dissertações.

Uma absurda dor de ouvidos impede-me de fazer a minha habitual catarse musical da uma da manhã e os olhos já não aguentam a leitura de meia página do meu livro de cabeceira.
 
Lá fora, dois ou três adolescentes gritam e pontapeiam caixotes do lixo, no estranho mas frequente vandalismo de domingo à noite. O ruído ecoa com revolta na rua deserta, como se as latas velhas, os trapos e os restos de comida espalhados na calçada trouxessem sentido àquelas vidas sem rumo.
 
Se ligasse a TV para ver o desfile da carpete vermelha já não me deitava tão cedo, o olhar preso às lantejoulas e reflexos coloridos de Hollywood.
Já me cansa a Grândola, e o Relvas, e o Papa, e o Gaspar, e o frio gélido, e os casacos grossos, e o desemprego, e esta estúpida dor de ouvidos. De certeza que já cansa a todos.

Fecho os olhos e lá estou eu na jangada do Pi, rodopiando à superfície do mar, num mundo em que os tigres comem peixes voadores e as suricatas dormem nas árvores.

Meia dúzia de seta luminosas apontam o caminho para o quarto e tenho que obedecer. Boa noite, mundo. Até já.

?

A noite vai longa, a manta felpuda sobre as pernas, as pálpebras cansadas e relutantes.
Os últimos dias passam-me rapidamente na memória, sucessão de slides desfocados, imagens irreais como se a vida fosse estática e feita só de cores primárias.
É no silêncio deste último suspiro de vigília que as minhas mãos ficam mais vazias, consolando-se uma à outra numa recordação mecânica das tuas.
Na confusão criativa destes minutos recordo a paradoxal sabedoria popular:
"Quem espera, sempre alcança."
"Quem espera, desespera."

Reformulo, mentalmente: "Quem espera, desespera e, como se não bastasse, nem sempre alcança".

Ainda assim, se o coração teima em não desistir, a lógica afaga-o de mansinho e deita-se com ele em concha, num último sono partilhado.

Memory Machine





I miss you and the memory machine
And the factory where we make something of dreams
And we wandered around your streets
With sewn on button eyes our ears become our memories

The blind loving the blind
And our voices become our fingers
And you touched me with your song
And touched me all night long

I miss you
I miss you

And the memory machine making whiskey from the things
We no longer need and you kissed me
But I was too drunk to really know
That you loved me enough to watch me go

I miss you

O muro de Berlim


Somos, assim, vozes sem rosto,
Frases sentidas em lábios cerrados.
Estátuas vis, de bronze e desgosto
Monstros inertes, demónios criados.



Somos, assim, o esqueleto do muro
Feras de guarda, de sangue e terror
Rudes cortinas de ferro obscuro
Forjadas, erguidas no âmago duro
Das almas perdidas e plenas de dor. 




Rascunhos

Descobertas incríveis têm lugar quando se explora a área de rascunhos da caixa de e-mail. Se excluirmos uma fabulosa compilação de imagens sobre os mitos da hipnose como método adjuvante na Psiquiatria, aqui fica o excerto meu mais interessante que por ali repousava, que aqui coloco descontextualizado e cru:


"Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os

dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.

O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas

amplia o vazio que cada um traz dentro de si."

Felizes para sempre

Quando o casamento acabou e tu fazias as últimas despedidas, eu agarrei a última orquídea branca da mesa nupcial e fugi pelas portas entreabertas do salão.
Cá fora a lua cheia ia alta, gigante testemunha da minha pequena fuga, derramando um luar ténue e cúmplice sobre as águas calmas da piscina.
À minha volta os arbustos erguiam-se como fantasmas, em estranhos recortes nocturnos, transformando aquela cena inusitada em algo sombrio e melancólico.
A mão, coroada enfim com a dourada aliança do compromisso, caminhava em minúsculas marés sobre a superfície da água. O vestido, antes imaculado, cobria agora o relvado húmido sem que eu me importasse. Todo aquele cenário era um fulgor refrescante depois do dia abafado, fútil e ardiloso que ali se findava, a flor amachucada na minha mão morrendo comigo, pétala por pétala, exalando o seu último odor de liberdade.
No âmago de mim, como um trovão de culpa insuportável, gerou-se o desejo de deslizar na margem de pedra áspera e inalar com todas as forças a água amarga e fria da piscina. No meu pequeno delírio, a minha alma imortal sobrevoava o cenário idílico por ti imaginado, paraíso de cisnes e cascatas de champanhe, e fixava o corpo inerte e flutuante, maravilhoso vestido de cauda ensopado cobrindo o centro daquela mentira.
Quando por fim se ouviu o ruído das portas de correr e o eco dos teus passos convictos no caminho calcetado eu acordei do meu sonho mórbido e fixei o meu olhar preto de mágoa em ti. Irrepreensível na tua postura de estátua grega, não revelaste um segundo de surpresa por me ver assim, despojada de toda a vergonha, semi-deitada entre os nenúfares e as colunas jónicas.
Seguraste a minha mão com firmeza e eu segui os teus passos, submissa, relembrando os motivos de todo aquele teatro de princesas, a aliança pesando toneladas no meu dedo fino, as lágrimas contidas na caixa do meu peito, guardadas para um dos raros momentos de solidão.
Atrás de mim, os arbustos riam e balançavam ao sabor do vento e o despojo da orquídea navegava de forma caótica, afundando por fim, sem hesitação, como uma consciência pesada.

Sem título

Quando a noite chega e preenche tudo à minha volta, questiono-me se as palavras ditas ficam guardadas no tempo e espaço em que aconteceram.
Poderei recuperá-las um dia? 
Ficarei para sempre impressionada com o facto de momentos que duraram minutos ou horas, poderem permanecer sedimentados na memória durante anos a fio, vívidos como quando ocorreram, doridos e emocionantes como um murro forte ou um beijo intenso.
Engulo em seco como naquele dia no parque de estacionamento, sinto o muro áspero onde me sentei e ouço o eco das palavras ditadas e assinadas.
Recordo o sabor salgado das lágrimas enquanto me deixava escorregar no banco do carro, olhos cravejados na água calma enquanto o sol desaparecia com os meus sonhos.
Embrulho-me com força na manta imaginária, enquanto relembro o frio gélido daquela manhã doirada, penetrante e cru como o final que antecipava.
Quando os recordo, dias intermináveis da minha vida, magoam menos do que quando surgem de forma imprevista, no inocente intervalo das tarefas quotidianas, manchando períodos de incólume tranquilidade.
Gostava de os guardar a todos em frascos rotulados, dispostos numa aberrante prateleira de recordações, num quarto para sempre trancado, longe da superfície da consciência. Gostava de parar este sabor agridoce na minha boca, a saudade que evoca, o lírico desejo de voltar atrás no tempo e transformar o choro em momentos felizes.
A distância que me separa de ti, memória vagarosa e linda, são 3 dias que parecem 3 eternidades. Peito rasgado a sangue frio, vontade de o deixar vazio até que os planetas se realinhem e tu regresses.
Posso voltar ao dia de hoje? Ao mês passado? Ao ano passado?
O novelo que me deixaste na mão permanece denso, insuportavelmente denso. Em vão, tentei desfiá-lo com os dedos gelados mas não sou capaz, preciso de ti e do teu calor vital para reencontrar a ponta solta.

A Vela

Não fiz até hoje outra coisa que não fosse acender toda e qualquer velinha que me pusessem à frente.

Com parcimónia, dedicação e até alguma condescendência fiz luz no mais escuro breu, usando o mais desengonçado pedaço de cera. 

Pacientemente, sem apressar o normal curso das coisas, aguardei, uma e outra vez, que o pavio se esgotasse, malditas velas sempre finitas, e nada mais restasse além de uma ruína de cera sólida, grosseiramente oval e totalmente irrecuperável.

No escuro, nem me dava ao trabalho de limpar estes sucessivos vestígios do fracasso da combustão, pelo que, cada vez que nova vela surgia, ainda o cadáver da anterior lhe servia de apoio, no agoiro de um triste e repetitivo fim.

Eventualmente, cansam-se as mãos e a alma e a cabeça de levar a cabo tarefa tão ingrata. Vão as velas todas para o lixo e compro um candeeiro.

Colisão

Colidimos os dois numa espiral absurda e surpreendente.

Em câmara lenta, o novelo que vinha enrolando há vários dias desvelou-se e caiu no chão, revelando a minha alma nua, num desconcertante grito gutural.

Não sei quanto tempo passou, nem sei se há mais novelos para desvendar, mas fico para já aconchegada neste espaço da minha memória, galgando etapas de reconhecimento interno, regozijando uma e outra vez com a aparição deste dia.
A manhã trará o mar e o som das ondas e talvez tudo se apague, na espuma salgada das horas, sem deixar rasto. Quem sabe, a aparição persiste e se transforma numa escadaria sem tempo, infinita, rumo à nuvem mais alta da condição humana.