Coffee talk

"- Sofia, já sei o que fazer para o meu próximo relacionamento resultar. 
 - Então?
 - Vou mandar mensagens paradoxais - num dia digo que a adoro e que não vivo sem ela e no dia seguinte digo que estou cansado, ou que preciso de um tempo, a seguir bato à porta com um poema e um ramo de flores e na semana seguinte discuto porque ela é negligente com o nosso namoro, and so on."
 - Isso parece-me um bocado disfuncional e instável, não?
 - A mim também me parecia mas concluo que é isto que prende as pessoas agora - a agitação, o caos emocional, caso contrário confundem estabilidade e harmonia com monotonia e começam a ficar entediadas. Na verdade, o ditado "quanto mais me bates, mais eu gosto de ti" foi inventado por uma alma iluminada a quem nunca deram o devido crédito.
- Mas não será possível encontrar um equilíbrio entre as duas coisas - a estabilidade e a paixão, a segurança e o desejo de surpreender?
- Quando o encontrares avisa-me e regista a patente."

Paciência

Paciência é esperar, na tranquilidade da noite, pelo raiar do dia, sem temer a insónia ou os pesadelos.

É ser capaz de fiar um tecido de esperança, anos a fio, por uma promessa fiel, resistente a mil ondas furiosas.

É caminhar passo a passo, um trilho de pedras soltas e poeira, aproveitando cada riacho fresco e cada campo florido da viagem, sem nunca perder o sentido da marcha.

É delinear cada letra, de cada palavra, de cada frase, sem pressa, sabendo que da perfeição e carinho de cada minuto, resultará um texto de cem páginas.

É tirar, todos os dias, pela manhã, uma fotografia através da mesma janela e, no final, folhear 365 momentos.

É ter na alma uma tonelada de palavras caóticas por dizer e saber guardá-las, até que façam sentido. 

 

Fim de ano antecipado

Nestes dias que antecedem o final do ano vivemos todos a antecipação desse suposto grande momento das doze badaladas, doze passas e doze desejos. Conjecturamos, uns mais conscientemente do que outros, um plano para os 365 dias seguintes, toda a realização pessoal e profissional concentrada numa dúzia de sultanas engolidas à pressa.

Na verdade, nós, seres humanos, passamos a vida inteira (nas pequenas e grandes coisas) a atribuir significados místicos a coisas externas, a projectarmos o controlo das nossas vidas para objectos, momentos, coincidências para depois concluirmos, com a maturidade e a passagem dos anos, que as nossas acções e intenções efectivas são aquilo que mais importa.

À nossa volta, os problemas reais adensam-se, estão na expressão do vizinho do lado, da senhora ruiva no metro, do sem-abrigo no caminho para casa, dos doentinhos no consultório. Em última análise, que fizémos nós para tornar o dia de alguém melhor?

Agora, gratos por termos comida no prato, um sítio para dormir e um ordenado ao fim do mês, seremos capazes de ser melhores pessoas?

Os fins do mundo


Mais uma vez, parece que o mundo vai acabar.
Nessa inusitada eventualidade aqui fica o meu "até sempre", para os que acreditam na vida após a morte, e o meu "adeus para sempre" para os outros. Regra geral, foi um prazer.
Por via das dúvidas, o meu conselho é que programem o despertador e se preparem para os compromissos de amanhã na mesma, 21 de Dezembro será apenas mais um dia para o comum mortal e uma fonte de imenso lucro para determinados promotores de uma "pseudociência" (o habitual, portanto).
Desde inundações cataclísmicas até colisões de asteróides, parece que os pobres Maias previram tudo. Eu conto safar-me com um chapéu de chuva da loja do chinês e umas botas de cano alto.
Por todas as razões, inclusivé porque ainda não visitei a famosa Chichén Itzá, porque conto regressar a Paris, porque não escrevi um livro, porque ainda não tenho filhos e porque nunca tive um cão espero sinceramente que o mundo não termine. Seria um fracasso pessoal.Assim, declaro aqui publicamente (para a meia dúzia de almas que ainda se demoram neste blog) que me recuso a morrer afogada em águas místicas ou engolida por línguas de fogo ou apedrejada por calhaus celestes. Tenham paciência.

Em todo o caso, um beijinho a todos.

Uma manhã qualquer

"Chovia a cântaros e, mais uma vez, tinha acordado tarde. Saí de casa sem que me lembre como, a chuva a escorrer-me pelos cabelos, passo apressado esperando a sorte dos semáforos verdes.

No metro, sacudi-me da água como podia e sorri para trás, para o dilúvio que continuava lá fora. Como uma criança, mãos encostadas ao vidro, respiração a embaciar a superfície fria, esperei que dos fenómenos naturais surgissem outros, fantásticos, dignos da mais excêntrica história de encantar. Dos meus sapatinhos vermelhos saltaram faíscas brilhantes e tu entraste, lutando contra o chapéu-de-chuva, encantador num desastre de varetas partidas e tecido rasgado.

Sorriste para mim, eu sorri de volta, cabelos desalinhados e o meu dia recomeçou. Havia dragões no céu e uma arca gigante balouçando uma centena de animais num mítico oceano moderno, mas eu estava já de alma seca, caminhando alegremente para a plataforma.
O teu sobretudo escuro caminhava ao meu lado e sorríamos os dois.

Toda a gente sabe que os príncipes aparecem em dias de tempestade, ensopados e despenteados, enquanto correm para a carruagem do metro em hora de ponta.

Sabemos todos, também, que desaparecem da mesma forma, entre a multidão heterogénea das manhãs da cidade, engolidos pelo cinzento do final de Dezembro e do betão das ruas. E assim nos separámos na terceira estação, quando tu saíste e eu fiquei, extasiada ainda na carruagem parada enquanto tu acenavas um fabuloso adeus com as ruínas do chapéu."
"Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus.
E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos como um cravo.
Meu amor, amor duma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca - e sempre a tua boca - comece de novo a nascer na minha boca.
Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbedos e perguntar o que aconteceu."
Eugénio de Andrade