As minhas perguntas retóricas

O que fazer quando tudo faz prever um futuro risonho mas o ruído de fundo se assemelha bastante a um esgar irónico?

O que fazer com uma pedra preciosa que de tanto mudar de mão está baça e lascada?

O que fazer com um sonho gasto? Reciclá-lo ou arranjar outro?

O que fazer com um coração que bate demasiado rápido? Fazer com que abrande ou tentar perceber a razão de tanta pressa?

O meu cão

É sabido por todos que me conhecem que é meu desejo desde a infância ter um cão.

Aquilo que é mais curioso é que o motivo pelo qual o quero tanto foi-se modificando ao longo dos anos, amadurecendo, tomando contornos cada vez mais complexos, mais adultos. Foi-se transformando à medida que eu conhecia melhor as pessoas e as relações entre elas. No fundo, foi-se transformando à medida que eu percebia que o amor de um cão é seguro, previsível, absoluto e recompensador ao contrário do amor de uma pessoa.

No início eu queria um cão para brincar, depois apercebi-me que também queria um cão para cuidar e mimar. A seguir percebi que desejava ardentemente aquela companhia que não cobra favores, nem critica, nem nega carinho. Mesmo agora, que entendo que o amor do cão não é totalmente desinteressado - envolve comida, abrigo e atenção - vejo que há poucas relações de tal simbiose, poucas situações em que podemos ter a certeza que vamos ser amados para sempre, protegidos para sempre.

Eu amo o meu cão embora não tenha nenhum. Amo o cão que imagino que vou ter: o brilho dos seus olhos quando chegar a casa do trabalho, as lambidelas nos meus dedos e a paciência inesgotável.

Eu já tenho um cão, só estou à espera que ele chegue.

Break-Up Songs


Eu quero ouvir uma musiquinha antes de me deitar.

YouTube, apetece-me deambular e encontrar qualquer coisa diferente.

Mas nós humanos somos tão previsíveis que o estúpido motor de busca já nos conhece as tragédias pessoais. E faz sugestões -  se gostas disto também deves gostar daquilo. Então, toma lá.

Dois ou três versos e já nos derrubam o espírito. Afinal somos tão vulneráveis, podiam vir com uma moca em punho e feriam menos. Basta ser genial para fazer uma música genial?
Não, é preciso ser genial e já ter tido um desgosto amoroso. Ou melhor, ser genial já ter tido um desgosto amoroso e estar com alguém que já teve um desgosto amoroso. Está composta a tríade das canções miseravelmente depressivas.

Estas pessoas deviam ser acusadas de abuso de poder, sabem bem que nos chicoteiam a alma e mesmo assim insistem em fazê-lo.


Feito o estrago ao menos posta-se a coisa para lhe dar menos importância, ali a seguir ao Hard Day's Night e à Cerelac e depois escreve-se um post de desabafo daqueles que não têm resposta.


Deita-se a cabeça na almofada e a música ecoa uma última vez, depois os olhos fecham-se e tudo se esbate.

Uma manhã

"Ele morreu aos 22 anos, numa emboscada na estrada."

Não chores, mulher, não chores mais... Era o nosso filho, sim. Estou só a contar aos doutores como foi.
Temos outros dois. Esses fui buscá-los à prisão, num dia de sorte. Na cela ao lado tinham estado sete homens e nenhum voltou a sair.
E fugimos. Já eu estava cego deste olho, doutora.
Chegámos a Portugal e os anos passaram.
Agora somos só os dois e esta bengala.
Já não há guerra, há só o vazio do que não veio connosco.

Boa sorte para o seu futuro, doutora. Agora vamos e nunca mais nos vai ver. Tenha filhos e queira Deus que não os perca. Siga os seus ideais e durma descansada à noite. Tudo o resto não depende de nós.

No tempo dos homens das cavernas

No tempo dos homens das cavernas (assim mesmo, de forma historicamente inexacta e cronologicamente vaga) não havia tempo para desgostos de amor.

Não havia tempo para ciumeiras, nem para joguinhos, nem para traições, nem para arrebatamentos, nem para serenatas, nem para reconquistas. O tempo que havia era para comer, para dormir, para acender fogueiras, para afastar predadores e para procriar.

No tempo dos homens das cavernas ninguém tinha vagar de se pôr chorar ou a sentir-se vazio e injustiçado porque o ente amado escolheu outro. Talvez nem houvesse entes amados. Talvez o amor seja puramente uma construção humana. Afinal, com o fim da luta dura e crua pela sobrevivência houve necessidade de arranjar outros dramas para ocupar o tempo.

Com o surgimento desta nova e maravilhosa faceta de apaixonado, o Homo Sapiens tornou-se também mais mesquinho, mais elaborado, mais calculista e mais dissimulado. Deixou de haver técnicas de caça ao mamute, mas outras lhes sucederam. Deixou de haver mortes com calhaus à traição por um bocado de carne crua mas continuou a haver golpes igualmente imorais.

Eu já vim aprender tarde essa triste verdade que não faz passar fome, nem frio, nem condena a sobrevivência da espécie mas mói como se a vida se transformasse num campo de batalha sem regras, sem honra: não há encantamento, nem paixão, nem amor que nos garanta nada, mais tarde ou mais cedo todos vamos ser pisados e humilhados.

Não deve haver no reino Animal ser menos confiável do que o Homem, capaz de apunhalar pelas costas e vir justificar-se com instintos e inevitabilidades da sua condição imperfeita.

Resta-nos manter a esperança de encontrar, neste tortuoso caminho, Homo Sapiens dignos, que percebam que só porque todos fazem não quer dizer que esteja certo.