Crochet

Hoje é dia de escrever sobre a ausência de angústia.

Já era tempo da inspiração vir embrulhada numa embalagem cor-de-rosa com corações, assim mesmo exuberante, palpitante, quase a tocar os limites da histeria.

Empanturrei-me de chocolate e, numa espécie de transe de endorfinas, tudo o que aconteceu a seguir me acelerou para este texto de felicidade irritante. Queiram, por isso, perdoar-me caso não tenham encontrado até agora, neste texto, qualquer esboço de fio que vos permita levar esta meada a bom termo... Deixem-na cair, desenrolar-se anarquicamente no tapete felpudo, acidentar-se nas patas astutas do gato ou esgotar-se
 na parede do fundo depois da sua viagem de coisa redonda que rebola.

Eu não estou preocupada. Cada vez que carrego numa tecla e dou um pontapé no novelo de ideias que tinha no início esboça-se cá dentro um sorriso e por isso continuo, toc toc toc, a teclar insistentemente, já o novelo se desfiou todo e eu ainda não sei o que vai sair daqui, se é camisola, ou casaco, ou pullover...

E quer-me parecer que há um qualquer sentido místico nesta escrita inconsequente que me permite ir trauteando qualquer coisa ao pé coxinho até à cama e adormecer com a sensação de que o mundo me abençoou há uns 9 meses, mais coisa menos coisa, e nasce agora a criança sob a forma deste shot de esperança verde-alface.

Tenho escrito!

Godfather

É tarde, estou a ver o Padrinho II e a cair de sono.

O jovem Vito está prestes a fazer a tal proposta que ninguém pode recusar.

Eu estou a aprender que não se pode confiar em ninguém e a adaptar esse valoroso conselho à escala do meu quotidiano, e ao de todos os leitores que, presumo, também não fazem parte da Máfia, nem andam por aí aos tiros, em vendettas, ou a cobrar dinheiro para oferecer protecção.

Bang, bang, bang. E o desgraçado morre de uma forma teatral e sanguinária.
E minutos depois já está o Vito agarrado aos filhos, sentado ao lado da mulher que deve ser boa a fazer pasta e a parir e a ficar calada, tranquilo como se não tivesse acabado de "enfiar 3 balázios" num gordo na escada de um prédio.

No meu quotidiano ainda não ocorreu que me tentassem balear, embora esteja eu agora ciente que há palavras que dilaceram como balas, intrigas que nos minam como veneno, acções que nos denunciam como uma impressão digital na arma do crime.

A gota de água que tu querias ser

Não gostava ela de outra coisa.

Lamentar-se das suas próprias desventuras na imaginação alheia. Ouvia a música, via o filme, e a vida dos outros era sempre um drama auto-biográfico.

São quase quatro da madrugada e parece até um presente celestial esse sono que chega e aconchega as pálpebras. Ela ali está, meio reclinada no sofá de três lugares, tem os phones nos ouvidos mas penso que não ouve nada, tal é a forma como os olhos estão vidrados na parede.

Não interessa o que pensa hoje. Amanhã terá lamentado as palavras ditas. É por isso que me deixo ficar aqui, a pairar, agarrando-lhe as mãos com violência e a memória com correntes de ferro para que se cale. Para que se cale.

Por esta noite consegui. O sono empurra enfim o corpo cansado para a cama e nem uma palavra sai daqueles lábios precariamente suturados.

"É só uma gota num copo de água", diz a voz na cabeça dela, "e o copo és tu toda e aqui continuarás quando essa gota se evaporar, mesmo que a gota seja o teu coração e a tua alma agora, não te esqueças, meu anjo, que as gotas de água são todas iguais."

Foi isto que aconteceu

A lua antecipa-se à escuridão total enquanto a princesa penteia 100 vezes o cabelo à janela do castelo de betão e tijolo:

Não tenho jeito para me ir embora.
E por isso vou ficando, mesmo que as flores definhem e o vento gélido me anestesie os sentimentos. Encostada gentilmente à parede, a fumar um cigarro invisível, enredada no vício de aqui estar.

Sinto aquela náusea dos amores não correspondidos, dos amores antigos revisitados, dos amores não compreendidos.

Nem sequer há dragões que impeçam de aqui chegar, não há floresta densa nem mitos de uma morte lenta, mas ainda assim não tenho na minha curta vida visto príncipes, a cavalo, a pé ou de lambreta, ou aos trambolhões, ou empurrados ou sequer enganados à procura do caminho para o mundo sem-princesas.

Ouvi uma música e comecei uma incrível história da conspiração, parece portanto que o mundo é deserto de romantismo e o meu destino é tropeçar nas pegadas dos outros. É por isso que são estas belas horas da madrugada e eu aqui estou, o cabelo penteado, a fazer um curativo no pé direito, violento que foi o pontapé que dei na parede em que vivo encostada. 
"Não cuspas na mão que te alimenta", remói ela na sua perplexidade de cimento. 
E deve ter razão.

A Princesa e o Sol

O mundo mudou enquanto adormeci.

Foram dias e semanas, a respiração profunda, entrecortada por monossílabos indecifráveis e canções.

Cheguei coberta com a areia dos sonhos e agora os lençóis abraçam-me, num confortável mas mundano aconchego.

Os meus sonhos imutáveis, adormecidos no seu caixão de ouro, adornados com a hera dos séculos, pouso neles a minha mão bronzeada e quero a mão branca da princesa que já fui.

Não sei que lógica é esta que me agarra aos caminhos de poeira, fustigados pelo sol, sem uma sombra de árvore onde refrescar o cabelo em chamas, sem uma nascente de água onde acalmar o ardor dos lábios. Só porque o final é a promessa daquele canapé de vidro, que é o amor de me quereres sempre contigo e nunca haver cansaço nas nossas mãos dadas.

E se me dizes que não consigo, quebrarei as pétalas que deixaste cair, sem fúria, sem pena, apenas num suspiro de recordação por terem sido, um dia, tão belas.