Intenções

...

O dia estava mais ou menos a meio, o sol entrava através do vidro das portadas e iluminava tudo com a simplicidade de quem faz a mesma coisa dia após dia, desde sempre e para sempre.

De tal forma eram os raios de sol indolentes que nem um deles se preocupou com ela, deitada no chão de madeira clara, meio embrulhada num lençol branco, olhos abertos a fixar o vazio, mão direita entreaberta deixando antever uma folha de papel rascunhada a esferográfica.

Lá fora a praia estava deserta de gente. As gaivotas tinham invadido o areal e deixavam um rasto de pegadas cómicas na distância em que as ondas beijavam a areia. Uma delas chegou mesmo a voar de forma determinada até ao terraço amplo que as portadas separavam da sala e fixou por breves momentos o olhar no vulto imóvel. Nada de atractivo naquela cena para quem apenas anseia pela próxima refeição.

E assim ela ficou novamente só, talvez adormecida, não fossem os olhos firmemente fixos no tecto branco. O busto bronzeado aparecia debaixo do lençol imaculado, as ondas do cabelo assemelhavam-se àquelas que tantas vezes tinha visto através da janela daquela mesma casa, alguns desses cabelos colados à cara pelas lágrimas que tinha chorado antes que tudo, por fim, se acabasse.

A carta que lera minutos antes do trágico desfecho enumerava as diversas e encorajadoras intenções de alguém, intercaladas de pedidos de desculpas...

Mas, como o povo diz, "de boas intenções está o Inferno cheio"... e de boas intenções está agora, por isso mesmo, aquele coração vazio.

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