Tempestade


O melhor daquele dilúvio era o parque de estacionamento vazio e a espécie de silêncio da queda rítmica das gotas no alcatrão.
O melhor da tempestade eram as lágrimas solitárias do céu em vez das minhas, baptizando tudo à minha volta.

Juro que não vi ninguém durante aqueles 20 minutos.
Juro que da rádio eras tu que cantavas, a mesma música tantas vezes seguidas.

Os ramos das árvores numa agitação molhada, manipulados por uma força maior do que eles, ficaram gravados na minha memória.
Não há nada a questionar quando a verdade nos impele para aqueles acordes mágicos.
Não há muito a acrescentar depois de aprendermos que o som de uma gota de água no vidro é uma nota musical.

(abrem-se com estrondo os portões da memória)

Não restava outra música depois da guitarra estragada, encostada à estante velha, as entranhas expostas ao mundo.
Não havia espaço para a guitarra nova enquanto aquela ali persistisse, o esqueleto de madeira à espera de ser descoberto.
Não havia armário escuro e poeirento onde ela coubesse, onde não chegasse o medo de que ela tocasse sozinha a melodia desafinada do seu segredo.
E como eu gostaria de a despedaçar nas minhas mãos, farpa por farpa, desvendar tudo nuns minutos e depois atirá-la para sempre para os confins do esquecimento, fazer com ela um estrondo no quarto desarrumado para depois ouvir o silêncio.

Nenhum momento se repete. Nenhuma história se repete.

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