Amadeu

Amadeu António Pereira nasceu na aldeia e na aldeia se criou. Fazia tudo: era barbeiro, sapateiro, sacristão, encenador. Casou-se novo, teve 6 filhos, amou a mulher até ao fim, foi teimoso e brilhante até ao último suspiro.
Já com 70 anos, contrariando as inevitáveis incapacidades da velhice, rumou uma vez mais à ribeira da aldeia para apanhar peixes, como sempre fizera. 
Planeou tudo: ia acender o rastilho da pequena bomba e atirá-la para o meio das águas, num estrondo abafado o leito rugiria e os peixes, atordoados, disparariam no sentido da superfície para morrerem nas redes dos homens.
Mas nesse dia de sol os olhos e os reflexos falharam e a bomba explodiu na mão fechada, deixando metade do corpo em carne viva. A dor era insuportável e o sangue escorria pelos dedos mutilados. Embrulharam-no num lençol branco molhado e levaram-no para a cidade.
No final da estrada de terra a mulher, Cândida, fez a sua despedida num gemido surdo, convencida que jamais o veria. Por medo, não entrava naquela máquina maldita com motor e faróis que lhe levava o homem para o hospital.
Contra todas as expectativas, Amadeu voltou meses depois, cambaleante, a mão sem dedos encostada ao peito orgulhoso de sobrevivente. Cândida recebeu-o num abraço e renasceram os dois. Aos 70 anos caminhavam lado a lado pela aldeia e iam de mãos dadas para a horta.
Dois anos depois, durante a noite, no silêncio da aldeia deserta e envelhecida, Amadeu acordou subitamente com frio, tapou-se melhor com a coberta puída, inspirou pela última vez o ar abafado do quarto, sentiu ao seu lado a presença fiel da mulher e morreu tranquilamente.
Amadeu António Pereira nasceu na aldeia e na aldeia se criou, teve 6 filhos e amou a mulher até ao fim. Amadeu era meu bisavô.

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