"Desde ontem que tento lembrar-me onde deixei o meu orgulho mas não consigo.
Numa espécie de demência selectiva nem sei já se o ontem foi mesmo ontem ou se foi há duas semanas, um mês, um ano, uma vida inteira.
Em volta, não me reconheço em nada nem em ninguém. Em desespero corro para a rua num intervalo da chuva intensa e procuro algum traço familiar na expressão turva que vai aparecendo nas poças de água.
Reconheço rostos na rua, trazem cartazes com setas apontando em sentidos contrários, sinais de stop, de sentido único, de sentido proibido. As folhas das árvores agitam-se sem vento, as pessoas vocalizam sem ruído, eu estou descalça.
Numa manifestação silenciosa e assustadora todos se aproximam numa marcha, impondo aos meus olhos marejados aqueles símbolos caóticos e inúteis.
Corro rua abaixo, em pânico, quando de repente o horizonte se transforma e a estrada acaba num abismo absurdo. Dentro de mim, sei que devo saltar. Numa espiral sem tempo nem sentidos percorro o vazio da minha imaginação e caio em solo firme.
Passaram cem anos ou um segundo, não sei, quando finalmente dou por mim no limbo entre o sono e a realidade, no ápex de um sonho.
O tecto do meu quarto começa a surgir nublado e, lentamente, os meus braços e pernas ganham vida, renascendo para o mundo da vigília. Lá fora, os ruídos da azáfama da manhã preenchem-me os ouvidos e eu suspiro de alívio."
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