Ele entrou, como num transe, a cabeça baixa e as narinas abertas, cada passo ressoando no soalho do chão, como um toiro enraivecido, humilhado, espicaçado, vertendo sangue do dorso robusto. Os olhos vidrados, colocados num plano além do real, os punhos cerrados prontos para causar dor em qualquer coisa ou pessoa que ali surgisse sem ser esperada.
Pling, pling... as gotas de sangue invisível a pintalgarem o chão. Afinal ele é de carne e osso.
Todos aqueles meses, a pele brilhante e lisa tinha-me iludido, a expressão confiante, a intransigência, julguei que fosse de um só material todo aquele corpo, até ao mais ínfimo e delicado pormenor, uma qualquer liga inquebrável, invulnerável e indecifrável que superasse o meu alcance e a minha imaginação.
Mas ele ali estava, ferido no mais íntimo do seu ser, quebrado por dentro como eu nunca pensei que fosse possível. Quando lhe toquei as mãos estavam geladas e a força morreu-lhe toda no abraço apertado. Caiu de joelhos, um baque surdo que me doeu no peito, tão fundo, tão fundo, num local de mim cuja existência desconhecia até então.
Do quarto nascia um cheiro acre a morte, a fios de alma embaciados. Eu era apenas uma espectadora triste do mistério da vida, do ciclo vicioso que nos leva do pó ao pó. A respiração profunda abafava-me os pés, depois as pernas e depois o ventre.
Deixa-me abraçar-te, disse ele num murmúrio gutural. Estás tão quente.
Deixa-me despir-te e sentir esse calor na minha pele devastada. Estás tão viva, e eu preciso desse bocadinho de mim que aí tens dentro. Põe-mo no peito de mansinho, com cuidado, e eu prometo que to devolvo em menos de nada.
Quero só lembrar-me que ainda estou aqui.