O que fazer quando tudo faz prever um futuro risonho mas o ruído de fundo se assemelha bastante a um esgar irónico?
O que fazer com uma pedra preciosa que de tanto mudar de mão está baça e lascada?
O que fazer com um sonho gasto? Reciclá-lo ou arranjar outro?
O que fazer com um coração que bate demasiado rápido? Fazer com que abrande ou tentar perceber a razão de tanta pressa?
O meu cão
É sabido por todos que me conhecem que é meu desejo desde a infância ter um cão.
Aquilo que é mais curioso é que o motivo pelo qual o quero tanto foi-se modificando ao longo dos anos, amadurecendo, tomando contornos cada vez mais complexos, mais adultos. Foi-se transformando à medida que eu conhecia melhor as pessoas e as relações entre elas. No fundo, foi-se transformando à medida que eu percebia que o amor de um cão é seguro, previsível, absoluto e recompensador ao contrário do amor de uma pessoa.
No início eu queria um cão para brincar, depois apercebi-me que também queria um cão para cuidar e mimar. A seguir percebi que desejava ardentemente aquela companhia que não cobra favores, nem critica, nem nega carinho. Mesmo agora, que entendo que o amor do cão não é totalmente desinteressado - envolve comida, abrigo e atenção - vejo que há poucas relações de tal simbiose, poucas situações em que podemos ter a certeza que vamos ser amados para sempre, protegidos para sempre.
Eu amo o meu cão embora não tenha nenhum. Amo o cão que imagino que vou ter: o brilho dos seus olhos quando chegar a casa do trabalho, as lambidelas nos meus dedos e a paciência inesgotável.
Eu já tenho um cão, só estou à espera que ele chegue.
Aquilo que é mais curioso é que o motivo pelo qual o quero tanto foi-se modificando ao longo dos anos, amadurecendo, tomando contornos cada vez mais complexos, mais adultos. Foi-se transformando à medida que eu conhecia melhor as pessoas e as relações entre elas. No fundo, foi-se transformando à medida que eu percebia que o amor de um cão é seguro, previsível, absoluto e recompensador ao contrário do amor de uma pessoa.
No início eu queria um cão para brincar, depois apercebi-me que também queria um cão para cuidar e mimar. A seguir percebi que desejava ardentemente aquela companhia que não cobra favores, nem critica, nem nega carinho. Mesmo agora, que entendo que o amor do cão não é totalmente desinteressado - envolve comida, abrigo e atenção - vejo que há poucas relações de tal simbiose, poucas situações em que podemos ter a certeza que vamos ser amados para sempre, protegidos para sempre.
Eu amo o meu cão embora não tenha nenhum. Amo o cão que imagino que vou ter: o brilho dos seus olhos quando chegar a casa do trabalho, as lambidelas nos meus dedos e a paciência inesgotável.
Eu já tenho um cão, só estou à espera que ele chegue.
Break-Up Songs
Eu quero ouvir uma musiquinha antes de me deitar.
YouTube, apetece-me deambular e encontrar qualquer coisa diferente.
Mas nós humanos somos tão previsíveis que o estúpido motor de busca já nos conhece as tragédias pessoais. E faz sugestões - se gostas disto também deves gostar daquilo. Então, toma lá.
Dois ou três versos e já nos derrubam o espírito. Afinal somos tão vulneráveis, podiam vir com uma moca em punho e feriam menos. Basta ser genial para fazer uma música genial?
Não, é preciso ser genial e já ter tido um desgosto amoroso. Ou melhor, ser genial já ter tido um desgosto amoroso e estar com alguém que já teve um desgosto amoroso. Está composta a tríade das canções miseravelmente depressivas.
Estas pessoas deviam ser acusadas de abuso de poder, sabem bem que nos chicoteiam a alma e mesmo assim insistem em fazê-lo.
Feito o estrago ao menos posta-se a coisa para lhe dar menos importância, ali a seguir ao Hard Day's Night e à Cerelac e depois escreve-se um post de desabafo daqueles que não têm resposta.
Deita-se a cabeça na almofada e a música ecoa uma última vez, depois os olhos fecham-se e tudo se esbate.
Uma manhã
"Ele morreu aos 22 anos, numa emboscada na estrada."
Não chores, mulher, não chores mais... Era o nosso filho, sim. Estou só a contar aos doutores como foi.
Temos outros dois. Esses fui buscá-los à prisão, num dia de sorte. Na cela ao lado tinham estado sete homens e nenhum voltou a sair.
E fugimos. Já eu estava cego deste olho, doutora.
Chegámos a Portugal e os anos passaram.
Agora somos só os dois e esta bengala.
Já não há guerra, há só o vazio do que não veio connosco.
Boa sorte para o seu futuro, doutora. Agora vamos e nunca mais nos vai ver. Tenha filhos e queira Deus que não os perca. Siga os seus ideais e durma descansada à noite. Tudo o resto não depende de nós.
Não chores, mulher, não chores mais... Era o nosso filho, sim. Estou só a contar aos doutores como foi.
Temos outros dois. Esses fui buscá-los à prisão, num dia de sorte. Na cela ao lado tinham estado sete homens e nenhum voltou a sair.
E fugimos. Já eu estava cego deste olho, doutora.
Chegámos a Portugal e os anos passaram.
Agora somos só os dois e esta bengala.
Já não há guerra, há só o vazio do que não veio connosco.
Boa sorte para o seu futuro, doutora. Agora vamos e nunca mais nos vai ver. Tenha filhos e queira Deus que não os perca. Siga os seus ideais e durma descansada à noite. Tudo o resto não depende de nós.
No tempo dos homens das cavernas
No tempo dos homens das cavernas (assim mesmo, de forma historicamente inexacta e cronologicamente vaga) não havia tempo para desgostos de amor.
Não havia tempo para ciumeiras, nem para joguinhos, nem para traições, nem para arrebatamentos, nem para serenatas, nem para reconquistas. O tempo que havia era para comer, para dormir, para acender fogueiras, para afastar predadores e para procriar.
No tempo dos homens das cavernas ninguém tinha vagar de se pôr chorar ou a sentir-se vazio e injustiçado porque o ente amado escolheu outro. Talvez nem houvesse entes amados. Talvez o amor seja puramente uma construção humana. Afinal, com o fim da luta dura e crua pela sobrevivência houve necessidade de arranjar outros dramas para ocupar o tempo.
Com o surgimento desta nova e maravilhosa faceta de apaixonado, o Homo Sapiens tornou-se também mais mesquinho, mais elaborado, mais calculista e mais dissimulado. Deixou de haver técnicas de caça ao mamute, mas outras lhes sucederam. Deixou de haver mortes com calhaus à traição por um bocado de carne crua mas continuou a haver golpes igualmente imorais.
Eu já vim aprender tarde essa triste verdade que não faz passar fome, nem frio, nem condena a sobrevivência da espécie mas mói como se a vida se transformasse num campo de batalha sem regras, sem honra: não há encantamento, nem paixão, nem amor que nos garanta nada, mais tarde ou mais cedo todos vamos ser pisados e humilhados.
Não deve haver no reino Animal ser menos confiável do que o Homem, capaz de apunhalar pelas costas e vir justificar-se com instintos e inevitabilidades da sua condição imperfeita.
Resta-nos manter a esperança de encontrar, neste tortuoso caminho, Homo Sapiens dignos, que percebam que só porque todos fazem não quer dizer que esteja certo.
Não havia tempo para ciumeiras, nem para joguinhos, nem para traições, nem para arrebatamentos, nem para serenatas, nem para reconquistas. O tempo que havia era para comer, para dormir, para acender fogueiras, para afastar predadores e para procriar.
No tempo dos homens das cavernas ninguém tinha vagar de se pôr chorar ou a sentir-se vazio e injustiçado porque o ente amado escolheu outro. Talvez nem houvesse entes amados. Talvez o amor seja puramente uma construção humana. Afinal, com o fim da luta dura e crua pela sobrevivência houve necessidade de arranjar outros dramas para ocupar o tempo.
Com o surgimento desta nova e maravilhosa faceta de apaixonado, o Homo Sapiens tornou-se também mais mesquinho, mais elaborado, mais calculista e mais dissimulado. Deixou de haver técnicas de caça ao mamute, mas outras lhes sucederam. Deixou de haver mortes com calhaus à traição por um bocado de carne crua mas continuou a haver golpes igualmente imorais.
Eu já vim aprender tarde essa triste verdade que não faz passar fome, nem frio, nem condena a sobrevivência da espécie mas mói como se a vida se transformasse num campo de batalha sem regras, sem honra: não há encantamento, nem paixão, nem amor que nos garanta nada, mais tarde ou mais cedo todos vamos ser pisados e humilhados.
Não deve haver no reino Animal ser menos confiável do que o Homem, capaz de apunhalar pelas costas e vir justificar-se com instintos e inevitabilidades da sua condição imperfeita.
Resta-nos manter a esperança de encontrar, neste tortuoso caminho, Homo Sapiens dignos, que percebam que só porque todos fazem não quer dizer que esteja certo.
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