Crepúsculo


Aqui estou, olhando pela minha janela. Quantos pedaços de gente e de vida já capturei através deste vidro? O dia despede-se com um derradeiro sorriso dourado, um adeus exuberante e lânguido que entra sem autorização pela minha sala. Sinto a terna calma do fim de tarde e o tempo quase pára.


Cheguei há pouco. Tinha estado num café, pejado de gente, daqueles em que infelizmente ainda é permitido fumar. O cheiro do tabaco entranhou-se na minha roupa e dá um toque desagradável a este momento. Passei uma boa tarde. Mas continuo sem compreender estes antros do vício onde várias pessoas se reúnem para retirar alguns anos de vida a si próprias e aos outros. O fumo cinzento e baço que paira sobre as mesas é como uma nuvem de morte, voluntariamente colocada sobre todas aquelas cabeças.
Num acto mecânico levam o cigarro à boca, uma vez, depois outra, frases entrecortadas por baforadas de fumo. Na mesa ao meu lado alguém diz 'tenho de parar de fumar que isto só faz mal'. O interlocutor sorri e olha para o cigarro que ele próprio segura entre os dedos: 'isso é se conseguires'. Ao lado das chávenas de café meio bebidas vê-se o invólucro maldito, aquele que diz qualquer coisa do género:"atenção que vai gastar dinheiro num produto que quase invariavelmente o vai matar, de uma ou outra forma grotescas".

Matamo-nos a pouco e pouco em tantos pequenos actos. Eu também o faço certamente, de uma forma mais subtil e insidiosa, cada vez que como batatas fritas ou quando opto por ficar sentada em vez de dar uma corrida.

Lá fora o sol já se pôs mas o dia ainda está claro. Em breve o astro-rei vai ceder o seu lugar à lua e milhões de pontos luminosos surgirão no céu de veludo negro. A minha tentativa de descrever a noite nunca se aproximará daquela que ele fez há tantos anos, aquela que tanto me fascina e apaixona. Quando a li pela primeira vez tive a certeza que a poesia era uma das coisas mais belas deste mundo.


"Vem, Noite antiquíssima e idêntica.
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
(...)"
Álvaro de Campos

2 comentários:

Jotomicron disse...

O crepusculo, aquele momento que já não é dia mais ainda não é noite, é um momento mágico! Uma transformação (em 5-7 minutos =P) que do dourado passa ao prateado, ao cinzento e escuro.

Sempre me senti fascinado pela rotação da terra e pelo ciclo dia-noite-dia-noite!

Sandra disse...

"ficar sentada em vez de dar uma corrida" :P

quartas e sextas, já sabes onde nos encontrar